skip to Main Content

Incesto e rivalidade nas telas da TV

Por Juliana Bressanelli Lóra e Tiago Barbosa

Jocasta Silveira e Édipo Junqueira foram personagens da telenovela brasileira Mandala, exibida pela TV Globo em 1988, contracenada por Vera Fischer e Felipe Camargo nos papeis de mãe e filho. Trama inspirada na tragédia grega de Édipo Rei, escrita por Sófocles, na qual o Édipo, rei de Tebas, “sem sabê-lo”, mata seu pai e desposa sua própria mãe. Mas afinal, por que a tragédia grega de mais de 400 anos antes de Cristo ainda figura um tabu na sociedade brasileira, a ponto de virar um chamariz para atrair a atenção do público para o horário nobre da televisão?

O mito de Édipo, tal como mencionado nas obras de Homero e na peça de Sófocles, denuncia como muitas vezes a mitologia se confunde com fenômenos de realidade na história humana. A tragédia, uma parte da celebração a Dionísio, evidencia como a constatação da fragilidade humana suscita todo tipo de sentimento. Efeito de catarsis, de purgação de emoções, que o próprio Freud já havia posto à prova, em seu uso do método catártico por meio da hipnose.

Ainda no início do século XX, Sigmund Freud, judeu, médico e neurologista, recorreu ao mito do Édipo para delinear a formação neurótica incutida no desenvolvimento psicossocial dos seres humanos. Trata-se de um processo na construção da personalidade com origem nas emoções da infância em que os conflitos psicossexuais oral, anal e fálico são cruciais.

Foi a partir da observação de seus pacientes histéricos, que Freud pode descrever uma fixação libidinal, amorosa e agressiva, por intermédio da pulsão, da criança em relação às figuras parentais. Elemento central no desenvolvimento da teoria psicanalítica.

O conflito edípico deriva da peça de Sófocles que exprime o desejo sexual do menino pela mãe e a rivalidade com o pai, e comparece no desenvolvimento infantil, na medida em que ele teme que, se o seu pai souber o que ele deseja, será punido com a castração e talvez a morte. Numa resolução “saudável”, a angústia da castração toma a forma de uma instância chamada superego, interditando seu acesso ao objeto desejado (a mãe), possibilitando a identificação do menino ao pai, e a construção de uma identidade masculina. Diferentemente, para Freud, a menina resolve o conflito edípico percebendo-se castrada e desloca o vínculo erótico com a mãe (o primeiro objeto de desejo para ambos os sexos), para o pai.

Recobrando o que acessamos por meio da peça grega, é na busca por escapar a seu destino que Édipo se vê frente a frente com a Esfinge às portas de Tebas. Ao tentar salvar a população tebana de um horrível obstáculo, Édipo é impelido a decifrar o enigma imposto pela terrível criatura: que animal caminha pela manhã em quatro patas, à tarde em duas e à noite em três? Ao que o jovem príncipe responde: o homem. Livra, assim, a cidade e seu povo da destruição. Não foi uma interrogação qualquer, trata-se de uma pergunta cuja resposta tem efeito de libertação.

Pois bem, ao se referir à infância em sua obra paradigmática “Os três ensaios para a teoria da sexualidade” (1905), Freud aponta para o fato de que a curiosidade típica deste período não acontece sem os questionamentos referentes à origem da vida e à própria morte. A pulsão de saber (Der wiesstrieb), caminho desviado dos objetivos sexuais, impele a criança à pesquisa sobre o mundo. Essa atividade de investigação, correlata à inibição das pulsões sexuais, estimula a criança na aquisição de conhecimentos e desenvolvimento do intelecto. Sendo assim, tudo começa com a sexualidade (e seus caminhos). Assim como o enigma da esfinge provoca, a criança se pergunta sobre o que é ser gente, de onde vem, onde estava antes de estar ali, o que é ser homem ou mulher.

O complexo de Édipo, articulado ao complexo da castração, é o que trilha o acesso à cultura pela submissão e pela identificação com o pai, portador da Lei. Reforçado pelos estudos antropológicos de Freud, em Totem e Tabu (1912-1913), representam o princípio da civilização caracterizado pela interdição do incesto e a instauração da Lei que regula o jogo do desejo humano.

Oras! A teoria freudiana trouxe um novo cismo para a humanidade. Nem Copérnico, que desalojou o ser humano do centro do universo, nem Darwin, que destituiu o homem da criação divina, apunhalou tão profundamente a humanidade quanto Freud, que a destituiu de uma consciência plena sobre seus atos. A descoberta do complexo de Édipo está estreitamente ligada à do inconsciente, pois é pelo complexo de Édipo que se cristalizam as instâncias do consciente, inconsciente e do superego.

Édipo Rei é talvez a primeira tragédia policial de que se tem conhecimento. Mais de dois mil anos depois, aparece reescrita em uma telenovela polêmica que abordou outros temas fortes além do incesto, como bissexualidade, drogas, alcoolismo, racismo, repressão e política, tanto que, pelo teor de sua sinopse, chegou a ser vetada pela terminal, porém ainda ativa, Censura Federal do governo José Sarney.

Mas aí, isso já é uma outra história.


Referências:
CLOONINGER, S. C. Teorias da Personalidade. Tradução: Claudia Berliner. São Paulo – SP: Martins Fontes, 1999.
FREUD, S. Um caso de histeria, Três ensaios sobre a sexualidade e outros trabalhos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
FREUD, S. Obras Incompletas de Sigmund Freud: Neurose, Psicose, Perversão – Neurose e Psicose (1924). Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2016.
SÓFOCLES. Édipo Rei (Coleção Obra Prima de Cada Autor). Tradução: Sir Richard Jebbs. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.
KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise – O legado de Freud a Lacan. Tradução: Vera Ribeiro, Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1996.
Back To Top