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INCELS E O ÓDIO À FEMINILIDADE1

Leonardo Lopes Miranda (EBP/AMP)
Raphäelle Martin - Coleção "Together”/Behance
Raphäelle Martin – Coleção “Together”/Behance

Em 2018, Alek Minassian, um canadense de 25 anos, foi preso acusado de homicídio após ter atropelado dezenas de pedestres em Toronto. Chamou atenção o fato de Minassian participar de um grupo de discussão na internet chamado Incels (diminutivo da expressão involuntary celibates), os celibatários involuntários. Trata-se de homens jovens que não conseguem ter relações amorosas e atribuem culpa às stacys e aos chads (mulheres e homens sexualmente ativos) por esse fracasso[2]. Encontramos esses grupos que se reúnem em fóruns no submundo da internet para propagar ódio contra mulheres. Vemos a tecnologia servindo à formação de grupos e, como produto de um processo de identificação, tem a eleição de um inimigo: as femoids (expressão que confere às mulheres um estado inferior ao humano).

Podemos pensar aqui o celibato como forma de evitar o encontro com o enigma do gozo feminino, como forma de defesa da virilidade. Freud (1937) [3] nos mostrou que o repúdio à feminilidade é uma característica da vida psíquica presente tanto no homem como na mulher.

Quando falamos homem e mulher, nos referimos a semblantes, posições que têm variações na parceria. A mulher, por sua relação “de origem” com a castração, é quem encarna mais a feminilidade. Miller diz que a mulher é amiga do real por não ter a mesma relação com a castração que os homens.

Ela é o suporte de uma verdade, “a equivalência entre gozo e semblante” [4], com a qual o homem, em sua frágil virilidade, não suporta se deparar. “É certamente mais fácil para o homem enfrentar qualquer inimigo no plano da rivalidade do que enfrentar a mulher como (…) suporte do que existe de semblante na relação do homem com a mulher” [5]. Essa proximidade com o real faria da mulher objeto de tanto ódio. Testemunha de um gozo excessivo, ela está constantemente na posição de transgressão, de escapar à norma fálica. “Sabemos até que ponto nos ocupamos de conter o gozo feminino, e como se tentou tamponar, canalizar, vigilar, este excesso de gozo”[6].

Diante desse gozo suplementar, o sujeito se sente ameaçado, pois o que excede retorna como ameaça de ser objeto de gozo. O ódio se dirige ao gozo do Outro: se dirige não só às mulheres, mas também aos homens que conseguem se relacionar com elas. Tenta-se evitar o encontro com a diferença e com o real da inexistência da relação sexual. Segundo Lacan, diante da impossibilidade de uma relação de proporção com o Outro sexo, há o semblante: ali onde não há nada, cremos que há algo.

Miller propõe que, atualmente, o sujeito se representa pela categoria dos semblantes não mais como articulador do simbólico e imaginário, mas como predominância, crença total no semblante. Segundo ele, o enfraquecimento simbólico torna o registro imaginário mais consistente, uma vez que o eixo simbólico não produz mais o furo no eixo imaginário, “não se encontra em absoluto em condições de perfurar, atravessar o imaginário” [7].

Com a prevalência do registro imaginário, há maior investimento no eu, que, além de transmitir uma falsa unidade, também inflaciona a ideia da perseguição, pois, como sabemos, o eu é paranoico. Podemos entender o celibato em questão, que se diz involuntário, como voluntário em sua renúncia sexual, que sabemos ser também uma forma de gozar.


[1] Texto gentilmente cedido para publicação em amurados.
[2] Quem são os ‘incels’ – celibatários involuntários – grupo do qual fazia parte o atropelador de Toronto. In: BBC NEWS Brasil. 27/04/2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-43916758. Acesso em junho, 2019.
[3] FREUD, S. [1937]. “Análise terminável e interminável”. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXIII.
[4] MILLER, J.A. (2010). “Mulheres e semblantes I”. In: Opção Lacaniana online. http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/Mulheres_e_semblantes_I.pdf p. 02.  Acesso em 20/03/2019
[5] LACAN, J. (1971) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 33.
[6] MILLER, J.-A. (2011). Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2011, p. 56.
[7] MILLER, J. A (2013). El Otro que no existe y sus comités de ética. Ibid., 2013, p. 14.
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