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Erotomania: Um modo de amor feminino

Por Frederico Feu de Carvalho (EBP/AMP)
Imagem: adorocinema.com.
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A erotomania é uma exigência pulsional derivada do postulado erotômano, isolado por De Clérambault, de que o Outro me ama. Pode ser tomada como um delírio de interpretação a partir de um signo de amor supostamente emitido pelo Outro[1]. Em termos lacanianos, o postulado erotômano descreve o fato de estrutura fundamental do ser falante que podemos resumir como “a hipótese do Outro” (por oposição à hipótese do mental). Podemos deduzir essa hipótese do fato de que, para todo ser falante, o gozo constitui um problema, o problema libidinal por excelência, por não ser nem programável por uma determinação biológica, nem socialmente construído, pela via das identificações ideais.

O gozo é, nesse sentido, um excesso, por extrapolar as possibilidades de subjetivação. A hipótese do Outro implica que o problema libidinal que afeta o ser falante é endereçado a esse Outro sob a forma da demanda, estabelecendo um trajeto de idas e vindas que comportam um resto, uma perda, uma entropia. Em outros termos, o gozo não faz laço com o Outro e retorna ao ser falante como Um, como se expressa Lacan para designar o limite autoerótico do gozo. Podemos explorar algumas consequências desse fato, sendo uma delas a deslocalização e a falta de bordas do gozo erotômano, o que faz dele uma forma que tem parentesco com a loucura em sentido amplo, assumindo, muitas vezes, a forma de uma devastação. A devastação pode ser definida, justamente, como a marca da presença do gozo no amor. “Mulheres que amam demais”, por exemplo, sempre são devastadas por esse “a mais” que a elas retornam.

A erotomania seria, portanto, o gozo do amor do qual provém a tensão entre o Um e o Dois. Ela é uma reivindicação nascida da exigência pulsional do Um, em relação ao parceiro, ao existir-a-dois. O Real próprio à erotomania é o amor como impossível. A erotomania pode ser pensada, então, como um empuxo em direção ao Dois que não existe, em contraste com o “empuxo em direção à mulher que não existe” do Presidente Schreber. Esse empuxo em direção ao Dois, à existência de um par, assume a forma da exigência de reconhecimento de si como o objeto que falta a esse existir-a-dois. O gozo erotômano não visa, portanto, a fazer A Mulher existir, como em Schreber, mas ao reconhecimento de ser aquela uma mulher que convém àquele homem. A erotomania demonstra, assim, a báscula do sujeito barrado em relação ao objeto.

É justamente essa exigência amorosa que Lacan descreve como a condição erotômana do amor do lado da mulher, em dissonância com a condição fetichista do amor do lado homem. Se, do lado homem, revela-se, segundo Freud, a divisão entre o objeto da pulsão e o objeto amoroso, a erotomania feminina visa unificar o amor e o gozo, seja ao tomar o desejo fetichista como um signo de amor, seja ao sobrepor ao objeto do desejo fetichista, ao qual ela se identifica, a condição amorosa.

A erotomania na psicose e na histeria

Podemos apontar na erotomania uma hipertrofia do Imaginário (a-a’) que tem como efeito a especularização do amor e a exigência de reciprocidade e reconhecimento. É essa tensão entre o objeto e o dejeto que coloca o sujeito erotômano sempre à beira da morte. De fato, o sujeito erotômano trata sua exigência como uma questão de vida ou morte. A qualquer momento, a simples negativa dessa exigência precipita o sujeito na direção da morte, à sua queda como dejeto do Outro. A erotomania parece mostrar da maneira mais pungente a íntima associação entre amor e ódio. Tudo está suspenso à resposta do Outro à demanda de amor erotômano.

O que distingue a erotomania na psicose talvez seja o grau de certeza da crença subjetiva no amor do Outro, o que faz com que, diante de uma negativa, o sujeito possa responder com a passagem ao ato ou de uma forma assintótica: “ele diz que não me ama, mas é porque ele ainda não reconheceu esse amor nele mesmo, ou não reconheceu em mim o objeto perdido pelo qual ele anseia”.

De uma maneira geral, a forma erotômana de gozo supõe que o sujeito se identifique ao objeto que falta ao Outro. Na histeria, em especial, como demonstrou Freud, isso supõe o pai impotente, o pai em falta em relação ao Falo, o pai castrado. O que caracteriza a erotomania histérica, portanto, é o domínio da fantasia pela qual o sujeito erotômano pode se oferecer ao Outro como esse objeto e redimir sua falta. Nesse sentido, podemos nos referir à fantasia erotômana como um vislumbre de conjunção entre o sujeito barrado e o objeto mais-de-gozar. Mas esse objeto, na histeria, está determinado como objeto causa de desejo, como falta, cumprindo assim uma função mediadora, nem que seja na forma de um amor devotado ou enlouquecido. A separação entre sujeito e Outro está dada como condição do amor erotômano na histeria. Na psicose, o sujeito é o objeto. Ele está certo disso. Portanto, não se trata aqui das contingências do amor, mas de uma necessidade, de uma copulação entre o sujeito e o objeto que desmente a barra colocada sobre o Outro.

De fato, podemos dizer que, em uma psicose, o sujeito erotômano localiza o objeto com o qual ele se identifica no Outro, de forma especular, da mesma forma que o paranoico localiza o gozo no Outro. É o que dá sentido à forma reivindicativa do amor erotômano, desde que o Outro lhe revelou o signo de amor. É preciso, então, que o Outro reconheça no sujeito erotômano a forma desse objeto que completaria esse Outro, na ausência do que, dirá o erotômano, a vida se reduz a nada.

A forma erotômana se liga, portanto, a uma recusa da feminilidade, isto é, uma recusa do não-todo que a caracteriza e que corresponde, no Outro, ao S(Ⱥ). A histérica, por sua vez, mantém o interesse pela feminilidade, embora de uma forma velada, passando por uma outra mulher, como uma corrente paralela, como Freud mostrou no caso Dora, em relação ao interesse de Dora pela Sra. K. Na psicose, podemos dizer,esseinteresse pela feminilidade, por aquilo que pode vir a causar o desejo do Outro pela via de um atributo, se encontra obstruído pela certeza delirante.

Um instante de amor (“Mal de Pierres”, 2016): recalque ou forclusão?

No filme de Nicole Garcia, o estatuto clínico da erotomania, entre psicose e neurose, pode parecer, a princípio, não muito claro. Por um lado, há várias razões para conjecturar que a realidade é radicalmente alterada devido ao amor erotômano de Gabrielle, uma vez que a negação, que caracteriza a operação fundamental do inconsciente, incide mais sobre a realidade do que sobre o desejo. Mas, aos poucos, vemos que a personagem de Marion Cotillard, Gabrielle, evoca em muitos aspectos uma histeria clássica, onde não faltariam os elementos alucinatórios ligados à remodelação da realidade pela fantasia, que mantém vivo o desejo erotômano. De fato, não é difícil encontrar, nos primeiros textos de Freud, referências ao esquecimento hipnótico e às alucinações como um complemento do recalque, ou seja, como uma manifestação da fantasia inconsciente à qual o sujeito se encontra aderido em detrimento da realidade da falta que o sujeito erotômano não pode reconhecer.

Como afirma Freud (1924/1969), a negação que incide sobre o elemento pulsional do desejo afeta o campo da realidade, sendo uma demonstração do caráter dominante do Isso sobre a realidade. Essa adesão à fantasia parece se justificar, no caso da erotomania, por uma decisão, uma devoção para que não se tenha que renunciar ao amor, isto é, àquilo que Gabrielle chama de “a coisa mais importante”, na falta da qual a vida não vale a pena. Vimos que o que caracteriza a forma erotômana é a adesão incondicional ao desejo, uma impossibilidade subjetiva de renunciar a esse desejo. É essa impossibilidade que lhe confere o aspecto de uma loucura. O recalque não incide, portanto, sobre o representante do desejo; ao contrário, o sujeito erotômano adere obstinadamente ao desejo e nada quer saber da falta que o caracteriza.

Não devemos perder de vista que o filme de Nicole Garcia é ambientado nos anos 40, embora seu transcurso se dê em torno de 15 anos ou mais, em um período, portanto, que antecede as grandes transformações do pós-guerra. Além disso, o roteiro (baseado no romance italiano, “Mal di Pietre”, de Milena Agus) nos permite abordar uma modulação do impossível ao possível mais próxima de uma mutação subjetiva do que da certeza psicótica.

De fato, podemos dizer que a fantasia assume aqui uma forma delirante, onde a realidade é negada para a perpetuação da fantasia. A trama se desenvolveria em três tempos: 1- a vigência do amor erotômano; 2- tempo de recusa e negação, que corresponde ao longo período em que Gabrielle alimenta o delírio de retorno de Sauvage (Louis Garrel), a quem ela dedica seu amor durante o tratamento de seu “mal de pierre”; 3- momento de retificação da realidade e reconhecimento da fantasia,que torna possível a abertura a um novo amor. A modulação do impossível ao possível, que vemos realizar-se no desfecho da trama, descreve, segundo essa leitura, uma forma de travessia da fantasia erotômana na direção desse novo amor. Veremos se essa hipótese pode ser sustentada.

Esse desfecho parece esclarecer, a posteriori, sobre o quê incide a recusa de Gabrielle no segundo tempo da trama: recalque ou forclusão? Ao optar pela fantasia, estamos tomando partido do recalque, na forma de uma erotomania histérica clássica, em que a realidade é negada e remodelada pela fantasia em nome da preservação do gozo erotômano do amor. Isso mostra que o recalque também pode ter como destino um amor louco.Proponho nomear esse segundo tempo como uma solução de compromisso no qual a fantasia acede ao lugar do sintoma (cuja forma é uma conversão corporal, uma dor diagnosticada como “mal de pierre” ou, simplesmente, cólica renal).

O fragmento de realidade que é negado corresponde à castração: não existe um x que não seja castrado, conforme a premissa universal do lado feminino do quadro da sexuação desenvolvido por Lacan em O Seminário, livro 20. A erotomania é uma espécie de devoção à falta do Outro, ao S(Ⱥ), na medida em que a castração é localizada no campo do Outro não é à toa que a devoção de Gabrielle encontra seu objeto em um oficial do exército que foi ferido na guerra da Indochina e que se encontra agora à beira da morte.

A remodelação da realidade pela fantasia, sem dúvida delirante, poderia ser descrita nesses termos: ele não está morto; ele se encontra apenas ausente; sua ausência cava em mim um buraco; mas quando ele retornar, esse buraco será sanado pelo amor. A erotomania pode ser definida, nesse sentido, como um falso buraco, um erro de localização, como se esse buraco pudesse ser suprido pela fantasia. “O verdadeiro furo está aqui, diz Lacan onde se revela que não há Outro do Outro”(LACAN 1975-1976 / 2007). Ou seja, ao contrário do que assevera a forma erotômana do amor, ‘não há um Outro que, em lugar de exceção, possa ter sua falta suprida’. O gozo erotômano do amor corresponde, justamente, à fantasia de que o amor possa suprir uma falta-a-ser e assim fazer a relação sexual existir. O que Lacan diz é o contrário: o amor vem em suplência da não relação sexual.

O que permite a passagem do segundo tempo ao desfecho da trama passa, portanto, por uma retificação do axioma erotômano que permite a Gabrielle localizar o furo para além da castração, para além do gozo fálico inerente à erotomania. A trama do filme termina como uma abertura à dimensão propriamente feminina que corresponde ao segundo termo do quadro da sexuação, o não-todo fálico. A partir do momento em que Gabrielle desce do carro em Lyon, no caminho para acompanhar o exame do filho pianista no conservatório da cidade, ainda sob a regência da fantasia que ela parece manter como uma reserva de gozo erotômano, inicia-se o périplo que irá verificar e circunscrever esse furo. Passaram-se anos, seu filho já é um adolescente; ela se manteve ao lado de José, em quem reconhece um bom marido. Mas ela permaneceu atrelada à sua fantasia, mesmo que possa, de um modo geral, manter-se de pé, desde que interrompeu o envio de suas cartas a Sauvage.

Esse périplo se dá em torno da constatação da morte de Sauvage, esse núcleo do real que a fantasia emoldurava, cujo ponto culminante, o verdadeiro atestado, é uma foto guardada e mantida na mesma mala desde a sua saída da clínica, onde, ao contrário do que supunha a sua remodelação fantasmática da realidade, no lugar em que deveria estar Sauvage, há uma cadeira vazia.

O verdadeiro furo, se acompanhamos Lacan, é irremediável e não pode ser objeto de nenhuma supressão, seja na forma de uma fantasia, seja na forma de um delírio. Não por acaso sua figura soberba é a morte, o “senhor absoluto”. A formação de compromisso que garante a vigência da fantasia, segundo Freud, obedece a essa dupla condição: o fragmento de realidade, no caso, a morte de Sauvage, é ao mesmo tempo admitido e negado. Não poderia ser negado se não fosse admitido. Mas o sujeito erotômano não consente com o real. Aliás, ela diz ao médico que a acolhe na clínica de tratamento, lhe explica os procedimentos e tenta tranquilizá-la: “e se eu não quiser me curar?”. Ela parece decidida a encontrar ali o seu objeto, mantendo-se afastada da rotina do casamento, e cada vez mais se interessa pelo trabalho das enfermeiras, com as quais faz amizade e se identifica.

A trama

Essa verificação do verdadeiro furo merece ser escandida, e abre uma discussão interessante sobre a posição e a função de José (Alex Brendemühl), o operário, o artífice, e sua parceria com Gabrielle. A personagem de José passa, a meu ver, de uma posição coadjuvante, subalterna, para uma posição central na trama, por assim dizer.

Recordemos o essencial dessa trama: Gabrielle é uma adolescente problemática, que vive com o pai, a mãe e uma irmã em um ambiente rural no qual José trabalha. Ela se apaixona por um professor que lhe empresta um livro, “um livro de amor”, que Gabrielle interpreta como um signo de amor do professor. Ela então se apresenta a ele em uma festa da colheita, com sua certeza erotômana. Ele a recusa, diz que ela é louca, que aquilo era só um livro, o que de nada adianta. Ela se desespera na frente de todos, para o constrangimento da mãe, que sempre a acompanha com um olhar severo e pouco afetuoso. Gabrielle sai correndo e desfalece em algum lugar no meio da plantação, sendo recolhida no outro dia. Na sequência, a mãe de Gabrielle surpreende José olhando para sua filha ao piano, como um bom fetichista. Ela então lhe propõe casar-se com a filha em troca de um apoio financeiro. José hesita, mas a proposta de casar-se com uma bela mulher, deixando o duro trabalho rural, para viver à beira mar, lhe parece sedutora. Gabrielle não tem alternativas: ou aceita esse trato, ou será internada em um hospício. Mas ela logo o adverte: “não vou dormir com você, nunca vou te amar”. “Eu também não te amo”, responde José. O contrato está firmado.

O casamento segue, em meio às dores renais de Gabrielle que às vezes se retira para passar até uma semana de cama. Ela observa os movimentos de José nos finais de semana para ir a bordéis. Ela então consente em ocupar esse lugar, mesmo que isso não resulte em prazer para ela, ao menos nas primeiras relações sexuais. Enquanto isso, José se ocupa da construção de uma casa para eles e deseja um filho. Um aborto espontâneo interrompe uma primeira gravidez e o médico sugere que ela vá se tratar de sua doença renal em uma clínica, por seis meses. “Você vai ficar feliz por estar sozinha”, diz José ao deixá-la nessa clínica. Ele vai visitá-la algumas vezes, o que parece aborrecê-la: “toda vez que você vem, chove”, ela diz, o que José interpreta como uma “crueldade” de Gabrielle, levantando-se da mesa de refeição durante uma dessas visitas.

É por ocasião dessa visita que José irá conhecer Sauvage, com quem tem um breve diálogo sobre a guerra dos homens. Sem saber que José é o marido de Gabrielle, Sauvage lhe dá a entender que poderia ter ficado com Gabrielle se não estivesse tão mal e impotente. José retorna então à noite e a procura na cama. Gabrielle não só consente com a relação sexual, como também parece desfrutar dela. No dia seguinte, ele assiste à cena da partida de Sauvage em uma ambulância para Lyon, cujo destino, como já fora antecipado a Gabrielle, é a morte. Ele observa como, ao se dar conta dessa partida, Gabrielle corre atrás da ambulância, sem poder alcançá-la, caindo então desfalecida, como ocorrera durante aquela festa da colheita, após abordar o professor.

Toda essa cena, da qual só saberemos no final do filme, como se fosse um trabalho de rememoração, é apagada por Gabrielle e substituída pela fantasia de que Sauvage retorna, declara seu amor, mantém relações sexuais com ela, para logo partir, no mesmo dia de sua alta clínica, prometendo voltar e levá-la com ele.

Essa “realização assintótica” da fantasia, por assim dizer, torna mais possível o contrato de casamento que ela tem com seu marido, José, que parece participar e consentir, a partir de determinado momento, com essa “formação de compromisso ampliada”. José sabe o que ocorrera na clínica, mas se manterá em silêncio sobre isso. Seria possível aproximar essa “formação de compromisso ampliada” de uma parceria sintomática que, em um certo sentido, inclui o gozo do parceiro? Qual o papel que o silêncio de José desempenha na trama?

Podemos formular a hipótese de que esse silêncio cumpre na trama a função de um tratamento da erotomania ou, pelo menos, de uma condição para que Gabrielle possa consentir, aos poucos, com o verdadeiro furo, aquele que Lacan localiza entre Imaginário e Real, para além da castração. O silêncio de José preserva vazio o lugar do objeto. Ele sabe que Sauvage perdeu a derradeira das guerras e não retornará. Mas isso não pode ainda ser admitido por Gabrielle, o que só se torna possível quando ela passa a consentir coma realidade das coisas, verificando o verdadeiro furo por ela mesma.

Isso pode ser mais bem escandido. Gabrielle retorna da clínica totalmente imersa na fantasia. Ela escreve cartas a Sauvage nas quais fala de amor e se define como estando reduzida a uma “espera”: “Ainda não desfiz as malas, apenas espero, sou apenas a espera. Seu corpo entrou em mim, faço parte de você. Onde você está? Pode estar ferido. Fale comigo”. Nesse ínterim, ela se engravida, e pede a José que ele não tenha esperanças: ela conheceu um homem na clínica; cedo ou tarde ela irá partir. José se enfurece, talvez devido à perspectiva da gravidez. Em outro momento, com as malas já prontas para partir, José a interpela: “Onde você vai?”. “Você sabe”, diz Gabrielle. “Mas ele não responde”, acrescenta José. “Tem razão”, consente Gabrielle.

As cartas retornam, pois elas não podem encontrar o destinatário. Elas retornam, tal como o circuito pulsional, ao remetente, ao Um. Mas José intercepta o retorno das cartas, compactuando dessa forma, em seu silêncio, com a fantasia de Gabrielle. Até que Gabrielle o surpreende, certa vez, com essas cartas nas mãos e se precipita para o mar em mais uma crise de loucura, sendo contida por José. Isso pareceprovocar em Gabrielle uma primeira mutação de sua posição subjetiva. De fato, uma carta não respondida, sobre a qual ainda se podem tecer conjecturas fantasiosas, é diferente de uma carta que não encontra o destinatário. Em outros termos: dizer que o Outro não responde, é diferente de constatar que o Outro não existe. Em seguida, Gabrielle interrompe a escrita das cartas: “É a última vez que lhe escrevo. Estou grávida. Se você não responder, é o fim”.

Para além da fantasia erotômana

A se contar pelo crescimento do filho, passaram-se em torno de 15 anos. José se dedica a esse filho de uma forma amorosa, enquanto Gabrielle se mantém afetivamente distante, embora ocupada com a rotina da casa e da maternidade. Um breve diálogo entre José ea mãe de Gabrielle, que vem visitá-los, nos ajuda a entender essa distância afetiva. A mãe observa que Gabrielle parece pouco afetuosa com o filho. “Talvez tenha sido ensinada assim”, responde José. O filho estuda piano (objeto que desempenha na trama uma função de laço entre Gabrielle, o filho e Sauvage) e parece se destacar. Gabrielle quer que o professor lhe ensine a peça “Bacarolle”, de Tchaikovsky, tocada certa vez por Sauvage na clínica, que ela sempre escuta, para alimentar sua nostalgia. Como já foi dito, a fantasia é uma espécie de reserva libidinal da qual ela parece disposta a não abrir mão. Gabrielle escuta as notícias da guerra, sempre imaginando onde pode estar o seu amor.

A cena final se dá em Lyon, quando o casal acompanha o filho para um exame no conservatório. Ela observa a paisagem pela janela do carro e se depara, então, com a placa de rua que corresponde ao endereço para onde remetia suas cartas. Ela se precipita para fora do carro. José sabe que não pode detê-la. No referido endereço, ela reencontra o ajudante de ordens de Sauvage. “Ele voltou à clínica depois de sua partida para Lyon”, dirá Gabrielle, de acordo com sua fantasia delirante. “Não”, dirá o interlocutor. Sim! Não! Sim! Não! Uma verdadeira batalha de vida ou morte se trava entre o “sim” e o “não”, entre a Verleugnung e o Real. No fim dessa batalha, às margens de um rio, descalça, ela parece experimentar o solo firme e imutável do real. Corre em direção ao teatro, no qual o filho faria sua apresentação, mas encontra o vazio da sala. Seu lugar no Outro está vazio.

Ela então interpela José, que lhe rememora o que ela só agora está pronta para ouvir, contando-lhe a cena de sua ida à clínica, sua breve conversa com Sauvage, seu retorno à noite dormir com ela e a manhã em que Sauvage é levado para morrer em Lyon. Ao chegar em casa, ela desmonta pela primeira vez a mala que mantinha fechada desde sua saída da clínica e verifica, na foto que guardava, o vazio da presença de Sauvage, lugar esvaziado de gozo, esse buraco central e intransponível que a fantasia recobria.

Gabrielle pergunta a José por que, afinal, ele não lhe havia dito nada sobre isso, guardando silêncio ao longo de todos esses anos. “Queria que vivesse”, responde o lacônico José, homem de poucas palavras. Mas Gabrielle parece ler nelas o signo de um novo amor, como uma carta que só agora ela pode abrir. Na cena final, Gabrielle pode finalmente se endereçar a José. Eles estão apreciando de longe a paisagem onde desponta a pequena vila onde José nasceu. “Qual é a sua casa?”, ela pergunta. O filme se interrompe aí, nesse “instante de amor”, feliz tradução para o intraduzível “Mal de pierres”.


[1]Transcrição do comentário do filme “Um Instante de Amor” (“Mal de Pierres”: Nicole Garcia, 2016), apresentado no Núcleo de Psicose do Instituto de Psicanálise e Saúde mental de Minas Gerais em 09/10/2020. Publicado originalmente na Revista Curinga, nº 50, jun./dez. 2020, Belo Horizonte: EBP-MG, p. 92 – 102.

REFERÊNCIAS:
FREUD, S. A Perda da realidade na neurose e na psicose (1924). In: ___ Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 227 -236.
LACAN, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2007.
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