Aconteceu em tempos de cólera e outras epidemias Por Rosangela Ribeiro – Comissão amurados “Se…
Entre um gozo que não se fala e a conversação viva de amor
Por Letícia Ferreira Braga
A maneira do gozo feminino
Dizer do gozo é apontar para um acontecimento de corpo que não se funda e não se garante completamente na relação com o Outro; onde há gozo há falta do Outro. Esse é um ponto de apoio importante para Lacan, uma vez que ele esvazia o Nome do Pai dessa função de a tudo significantizar; há algo que está além do Outro. Escrever S(Ⱥ) com essa barra no Outro diz do significante que falta a ele — assim Miller (2008) também compreendeu, a partir de Lacan, quando traz que “do lado feminino, o gozo que lhe é próprio está intrinsecamente, de maneira fundamental e indiscutível, ligado ao Outro, ao amor do Outro na forma de S(Ⱥ)” (MILLER, 2008, livre tradução). O gozo feminino tem fundamental e indiscutível relação com o Outro no sentido que falta a ele um significante que diga o ser, assim sendo, não mais pela total garantia de que nada escapava à significância que o Nome do Pai tinha.
Laurent (2012) traz, a respeito do artigo “Uma criança é espancada”, de Freud, “eu gozo, eu recebo meu gozo de você que me espanca” (LAURENT, 2012), mas lido enquanto uma “mensagem sob uma forma invertida, (…) isso quer dizer: [receber] seu próprio gozo sob a forma do gozo do Outro” (LACAN, 1992). Faz-nos olhar para esse “você” que é o pai, quem garante a justa medida tanto do gozo de sua fantasia masculina quanto da proteção para que haja a incidência do Nome do Pai no ser falante na posição feminina; trazendo, pois, a perspectiva em torno do ser falante na posição feminina.
Nesse sentido, Laurent (2012) diz que Lacan retoma o conceito de privação, que trata do que não se demanda, que não tem a ver com o ter, mas com o ser. Os seres falantes em posição feminina não confrontam e não temem a fabricação do seu ser, o fazem livrando-se do seu ter. E essa fabricação pode ser sem limite, ao ponto de consentirem a se “dispor delas mesmas e de seus corpos” (LAURENT, 2012) — tal qual Miller (2008) cita Lacan, “amarás ao Outro mais que a ti mesmo” — para fazerem aparecer um ser assegurado pelo Outro (Laurent, 2012).
Esse vetor de fabricação do ser apontando para um maisa partir da subtração do ter (idem, 2012) é a localização do gozo da privação ─ Lacan assim defendeu contestando Freud, para quem o sítio da “expressão do ser da mulher” era o masoquismo (idem, 2012).
Chama a uma atenção ímpar ao modo de gozo do ser falante feminino não ser totalmente simbolizável, ser atravessado pelo simbólico mas não de todo. Lacan (2008a) nos mostra que “não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixa de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá a toda. Mas há algo a mais” (LACAN, 2008a).
Esse algo a mais do gozo feminino no Seminário 20 é o que nos coloca na via da ex-sistência (idem, 2008a). Ainda no Seminário 16 Lacan vai aproximar o recalque originário de Freud (o Urverdrängung) “ao núcleo já fora do alcance do sujeito, embora seja saber” (idem, 2008b) — e saber é aquilo que faz cadeia significante. Uma vez que a ex-sistência é da ordem do real, prevê-se uma ruptura tanto com o recalque originário de Freud quanto com o objeto a — objeto perdido, jamais reencontrado, entretanto, agora já compreendido por atravessamentos da representação.
Miller (2008) aponta que a operação analítica deve agir não ao que faz cadeia, mas sobre o gozo. O significante, que é causa de gozo no corpo vivo, esvaziado dos efeitos de significado, reduzindo-se a linguagem, o sentido, a fala, o saber, desvanece-seo Outro. A própria fala e a linguagem retomam seus lugares de raiz do fato puro do significante (Miller, 2008); a escuta mira não mais o sentido, mas o primário na e da singularidade do ser, mira o acesso ao gozo em sua existência própria em acontecimento de corpo — o que é da ordem do ex-sistente.
Sobre a Pele
Sobre a Pele é também o nome de um trabalho de dança contemporânea, do coreógrafo e bailarino João Paulo Gross (2015)[1].
Segundo o próprio coreógrafo[2] essa coreografia tem influência da obra Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes (1981), por meio da qual Gross buscou falar com o corpo “sobre a relação do indivíduo consigo mesmo, com o outro, com um grupo e do grupo com o indivíduo”[3].
A obra de Barthes, por sua vez, nos traz uma série de termos conceituados e dispostos em ordem alfabética, sendo cada um deles perpassados por fragmentos de discursos amorosos presentes em obras de autores das mais diversas linguagens literárias, filosóficas, sociológicas, bem como psicanalíticas. Uma obra, pois, que fala de amor.
Uma vez que toda e qualquer relação humana está perpassada pelos desdobramentos do amor, vê-se um diálogo entre Gross e Barthes tanto por não serem narrativas em estrutura romântica tradicional, quanto por tocarem na temática do amor por um caminho que busco trazer aqui, que é o da contingência, do acaso, se assim os corpos se permitirem.
Ao retomar Lacan (2008a), Naveau, em O que do encontro se escreve (2017), dá destaque para a compreensão de que a relação sexual entre dois corpos de sexo diferente não faz Um, não elimina a solidão do ser falante, mas possibilita fazer dois Uns separados.Lacan (2008a) nos transmite que “não há relação sexual” porque enquanto o gozo do lado do homem é perverso, o do lado da mulher é enigmático. O homem aborda uma mulher tomado por sua causa de desejo, seu a, não a mulher como tal. Quanto à mulher, ela tem um gozo que ela experimenta, mas não sabe sobre ele e não diz nada a respeito; ela apenas sabe que ele acontece.
Sendo assim, de ambos os lados o gozo do corpo do Outro é inadequado, é um real impossível de articular. E fazer dois Uns separados é justamente o que é possível por meio do amor. O amor, esse acontecimento compreendido como aquilo que atravessa a inadequação do corpo do Outro, aquilo que substitui, que faz suplência ao impossível da relação sexual. E, ainda que ele não esteja para o gozo, eles podem se unir (Lacan, 2008a).
Realização possível de junção mediante coragem. Coragem da mulher para com a perversão do homem; coragem do homem perante o enigma da mulher. É nessa possibilidade, nessa contingência de um encontro que, então, aquilo que não cessava de não se escrever, aquilo que não existia no dizer, abre-se a uma ligação — uma ligação do encontro com o escrito, ou seja, se escreveria um tipo de ligação. Ligação encarnada no corpo, é “sobre a pele”, portanto, que o amor marca a cessação do que não se escrevia. Um encontro com tudo o que marca seu parceiro, não enquanto sujeito, mas enquanto ser falante: seus sintomas. É sim um encontro, mas com os acontecimentos de corpo, com a contingência corporal de um outro ser falante. Fazendo, pois, dois Uns separados.
A partir do encontro, aquilo que não existia e que, então, se abre a uma ligação, inscreve o destino do ser falante, emerge um saber e, portanto, inventa-se um saber.O ponto a que se chama a atenção é o seguinte: esse encontro é de fato uma contingência, um instante, um tempo de suspensão ─ esse é o tempo do amor! Entretanto, “o amor se ata a esse tempo de suspensão, (…) de passagem”(NAVEAU, 2017) em direção à necessidade, buscando se fixar. E esse sentido substitutivo da contingência à necessidade faz com que aquilo que não cessava de não se escrever passe a não cessar de se escrever. Essa direção do amor à fixação “torna o encontro opaco” (idem, 2017). Se assim, o destino do amor tem em seu caminho o “letreiro PERIGO” (idem, 2017): escolha do amor X drama do amor.
O fato é que a necessidade não está para a contingência, que é exatamente a temporalidade do acontecimento do amor, do encontro de dois saberes inconscientes caracterizados por um “eu não quero saber nada” e que, por isso mesmo, atravessa a intimidade do próprio encontro (idem, 2017).O encontro amoroso dá existência ao que não se inscrevia e irrompe um saber, mas ele mira e se articula com o acaso, não com a necessidade, cujo caminho leva ao oposto do interesse do sujeito, ao limite disso: não querer saber mais nada do encontro e, exausto, retornando cada um à solidão, ao exílio inicial e a prevalecer o silêncio (idem, 2017).
Contingência, possibilidade, acaso, suspensão: invenção do instante e invenção a cada instante, portanto, é o que quer o amor. Novamente, que se tenha coragem para tornar isso possível, pois isso não se dá sem se cansar, sem “que ali se coloque algo de seu, que se pague com sua pessoa. Em suma, que se diga alguma coisa” (idem, 2017)
A conversação se mostra como a vivacidade do amor, a possibilidade de existência do amor, de insurgência de um saber novo — o que não se sabe o que é. Para Lacan (2008a) “falar de amor é, em si mesmo, um gozo”; para ele a junção do amor com o gozo é um enigma — isso aponta, pois, para algo do real do inconsciente, o qual muda, muda tudo: dois Uns que se dão “sobre a pele” de cada ser falante no instante em que se diz determinada palavra, não outra.