15 de setembro de 2022
Das parcerias amorosas ao mistério do inconsciente
Por Renato Carlos Vieira (EBP/AMP)
Lacan, em “mais, ainda”, nos diz que o real é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente. Diz também que o ser falante não é a linguagem. O ser falante é bem outra coisa. Ele habita a linguagem e tem um corpo. Um corpo que se goza (1).
Por outro lado, do ponto de vista da estrutura da linguagem o inconsciente, ao não se reduzir a ela, aponta para o mistério do corpo falante e, por conseguinte, do próprio inconsciente, isto é, o real sem sentido (1).
Para Lacan, a análise é revela esse ponto nodal pelo qual a pulsação do inconsciente está ligada à realidade sexual.
No Seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Lacan anuncia que, para além do inconsciente ser estruturado como uma linguagem, a realidade do inconsciente é sexual – “a realidade do inconsciente é a realidade sexual” (2).
Esse enunciado subverte o ensino de Lacan e o leva a examinar mais de perto a realidade sexual do inconsciente. Nessa perspectiva, chegamos a algo novo sobre a sexualidade feminina: “[…] do lado de Ⱥ mulher, é de outra coisa que não do objeto a que se trata no que vem em suplência a relação sexual que não existe” (1).
Logo, mais além do mito edipiano, indagamos sobre o que vela os muros (dos amuros) do amor.
Sabemos que, no final do ano de 1971 e no início de 1972, Lacan retorna ao Hospital Sainte-Anne para uma série “conversas” sobre “O saber do psicanalista”. Nesse mesmo período, na praça do Pantheón, no âmbito da Faculdade de Direito, ele ditava o Seminário “…ou pior”.
As conversas de Lacan em Sainte-Anne aconteceram na capela do hospital. Foi lá que ele proferiu a celebre frase “estou falando com as paredes” [murs] (3).
Chama atenção o fato de as paredes circundarem um vazio. Logo, isso nos leva a pensar que tem algo a mais nas cartas de amor do que o ridículo que nos chama atenção o poeta Fernando Pessoa ou o sentido que o senso comum supõe no amor.
Na capela do hospital Sainte-Anne, Lacan nos convida a segregar o sentido com um certo vigor pois, segundo ele, o sentido “é uma pequena borboleta acrescentada a esse objeto a com que cada um de vocês tem sua ligação particular” (3).
Sendo assim, somos levados a questionar sobre o que há de enigmático e indecifrável nas cartas de amor.
Sabemos, que “o amor demanda o amor” (1). Contudo, em “mais, ainda”, Lacan sublinha que há uma falha de onde parte a demanda de amor e que, para localizar algo que seja capaz de “responder pelo gozo do corpo do Outro”, ele evoca o que há de “traços no amuro”. Em outras palavras, daquilo que “aparece em signos bizarros no corpo” (1).
Observa-se que Lacan indica uma clivagem da parede. Ele afirma que há alguma coisa instalada na frente (a fala e a linguagem) e por trás isso trabalha (4). Isso nos remete à dimensão da economia do gozo do ser falante, ou seja, aquilo que é sustentado pelo real como impossível de fazer existir a relação sexual entre os seres falantes.
Entre os homens e as mulheres a coisa não vai – há um muro / amuro. Isso é o que constitui o fundo da vida, diz Lacan (1). Porém na perspectiva dos efeitos da linguagem, nesse registro, a coisa vai assim mesmo – “graças a um certo número de convenções, de interdições, de inibições, que são efeitos da linguagem”. Os homens, as mulheres e as crianças [tudo que faz coletividade] não são mais do que significantes (1).
Um homem não é outra coisa senão um significante, afirma Lacan. Ele procura uma mulher por intermédio de um discurso, mas nela – por ser a mulher não toda – há sempre alguma coisa que escapa ao discurso (1).
O discurso analítico demonstra que no discorrente da linguagem a mulher só entra em função na relação sexual enquanto mãe (1). Porém, isso não passa de uma suplência desse não-todo sobre o qual repousa o gozo da mulher. Esse gozo que a faz em algum lugar ausente de si mesma, ausente enquanto sujeito, e a leva encontrar, como rolha, esse a que será seu filho (1)
Por outro lado, se a relação sexual entre um homem e a mulher (xRy) pudesse escrever-se de maneira sustentável num discurso, o homem sempre entraria nela como um significante enquanto tendo relação com o gozo fálico, isto é, mediante a castração (1).
Portanto, a relação entre o homem e a mulher só se sustenta mediante um discurso e tudo escapa aí pois, no que concerne à relação sexual, “vocês não poderão jamais escrevê-la … com um verdadeiro escrito enquanto aquele que, da linguagem, se condiciona por um discurso” (1).
Sabemos que no ensino clássico de Lacan o gozo estava segregado pelo amor em favor do desejo. Porém, em seu ultimíssimo ensino Lacan desloca o gozo do campo das transgressões. O corpo se goza, ele é índice da ex-sistência da substância gozante. Temos aí, segundo Miller, o cogito lacaniano [je suis donc se jouit] derivado de um gozo opaco do sintoma impossível de negativar (5).
Lacan no Seminário “os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” é categórico ao dizer que “é no nível da pulsão que o estado de satisfação deve ser retificado” (2).
A satisfação é paradoxal, afirma Lacan. Ela coloca em jogo a categoria do impossível – o real da não relação sexual. Porém, ao final de seu ensino, ele nos adverte a respeito da verdade mentirosa. Em outras palavras, no que tange a miragem da verdade, “da qual só se pode esperar a mentira” (6), Lacan afirma que não há outro limite a não ser a satisfação que marca o fim da análise. Para isso, é preciso suportar que o desejo – não o sujeito – seja sempre insatisfeito.
Com efeito, um novo amor poderia surgir a partir do movimento do ser falante em admitir o objeto pulsional sem a pretensão de fazer dele algo seu e obter satisfação sem atingir seu alvo. Em outras palavras, a satisfação poderia neste caso contornar o vazio ocupado pelo objeto a para, como disse Lacan, “se ter uma ideia sadia do amor” (3).
Sabemos que o amor faz signo e ele é sempre recíproco. Por outro lado, em se tratando do gozo do corpo não há reciprocidade (1).
Parece que temos aqui, na distinção entre a reciprocidade patrocinada pelo amor e a não reciprocidade do gozo, um pequeno esboço do mistério que indica a não existência da relação sexual, mediante a ex-sistência de um gozo opaco do sintoma.
Quando se olha mais de perto para a reciprocidade do amor o que se vê são as devastações (1). Por outro lado, o gozo sempre nos coloca uma questão.
“Mais, ainda, é o nome próprio dessa falha de onde, no Outro, parte a demanda do amor” (1). Em síntese, a falha produz, no Outro, a demanda do amor.
Com efeito, vem do amuro aquilo que, de maneira não necessária e não suficiente, é capaz de responder pelo gozo do corpo do Outro (1).
Amuro, é o que aparece em signos bizarros nos corpos. São caracteres sexuais que vêm do além, como se fosse um gérmen que não tem uma estrutura de linguagem. Eles se incorporam no corpo que leva seus traços. “Há traços no amuro. São apenas traços” (1).
Esses traços colocam o ser do corpo na dimensão do sexo: “o ser do corpo é sexuado, mas é secundário” (1). A experiência demonstra, prossegue Lacan, que não são desses traços que dependem o gozo do corpo. Há um mistério inconsciente entre o Um (que só se sustenta pela essência do significante) e algo que se prende ao ser e, por trás do ser, ao gozo” (1).
A partir da periquita que se enamora de Picasso, especificamente pelo colarinho de sua camisa, Lacan demonstra como funciona, pela via da identificação, as parcerias amorosas: “a periquita se identificava com Picasso vestido” (1).
Da mesma forma, isso acontece com tudo o que diz respeito ao amor. Ama-se os semblantes, mas quando se olha para lá mais de perto, veem-se as devastações. O hábito ama o monge e é por isso que eles são apenas um. Dito de outro modo, “o que há sob o hábito, e que chamamos de corpo, talvez seja apenas esse resto que Lacan chamou de objeto a”. “O que faz aguentar-se a imagem, é um resto” derivado dos signos bizarros no corpo que faz o ser sexuado. (1).
A experiência analítica dá como testemunho o fato de que tudo gira ao redor do gozo fálico e que a mulher só se define por uma posição não-toda no que se refere ao gozo fálico (1).
“O gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem não chega a gozar do corpo da mulher, precisamente porque o de que ele goza é do gozo do órgão” (Lacan, 1985, p.15)
“[…] De um lado, o gozo é marcado por esse furo que não lhe deixa outra via senão a do gozo fálico. Do outro lado, será que algo pode ser atingido, que nos diria como aquilo que até aqui é só falha, hiância, no gozo, seria realizado?” (Lacan, 1985, p.16).
Com efeito, Lacan evoca a topologia, em contraposição à geometria, para tratar da dimensão do gozo do corpo. Ele parte da premissa de que o gozo sexual é fálico e que ele não se relaciona com o (gozo do) Outro como tal (1).
A linguagem que está fora dos corpos, ainda que ela os agite, faz com que o Outro, que se encarna como ser sexuado, exija que o “ser sexuado das mulheres não todas não passe pelo corpo, mas pelo que resulta de uma exigência lógica na palavra”, e que cada mulher seja tomada uma a uma. Em outros termos, Lacan sustenta que “essa exigência do Um é do Outro que ela sai” (1).
A mulher em seu corpo é não toda como ser sexuado. Mas, no que tange às articulações sobre o ser, Lacan diz que tudo o que se articulou sobre ele supõe que se possa recusar-se o predicado e dizer o homem é, por exemplo, sem dizer o quê. Isso significa que:
“[…] nada pode ser dito senão por contornos em impasse, demonstrações de impossibilidade lógica, aonde nenhum predicado basta. O que diz respeito ao ser, ao ser que se colocaria como absoluto, não é jamais senão a fratura, a rachadura, a interrupção da fórmula ser sexuado, no que ser sexuado está interessado no gozo” (Lacan, 1985, p.20).
Por fim, no que tange ao amor o que se diz é que certamente “não se pode falar dele”. Pode-se falar da carta de amor, da declaração de amor, “o que não é a mesma coisa que a palavra de amor” (1). O amor é o que vem em suplência à relação sexual que não existe (1). Essa é a via que nos leva ao deslocamento das parcerias sintomáticas rumo à localização sob transferência do parceiro-sinthoma de cada um.