Primeira Noite de Cartéis da SLOf
Ary Farias, Diretor de Cartéis da Seção Leste-Oeste (em formação), abriu a noite fazendo um breve resumo do que foi trabalhado pela SLOf neste curto período desde março, quando começamos, e nos trouxe um discurso político enfatizando o grave momento que vivemos de pandemia, pobreza, desigualdade social e colonialismo, fundamental para considerarmos a nossa função como cidadãos brasileiros, nesse mundo globalizado.
Em nossa Seção, temos atualmente 10 cartéis em funcionamento, sendo 6, em Vitória, 4 em Goiânia. Em Mato Grosso do Sul, onde havia cartéis, se dissolveram. Dois cartéis devem se inscrever na próxima semana. Estamos às voltas com a retomada deste trabalho que é base da Escola de Lacan.
Ary comenta que o significante SLOF significa bicho preguiça, e inglês, mas que caracteriza-se de forma insólita, pois, no nosso caso, o nosso bicho preguiça toma ritalina, pois produzimos de forma absolutamente veloz. Foi um momento de graça e ironia.
Sobre o trabalho e cartéis, Ary convoca diretamente os jovens a se engajarem e lembra o nosso compromisso ético nos leva ao significante forjado por Noemi Brown de “consubstancialidade” que corrobora com a perspectiva de Lacan que coloca o cartel como órgão de base da Escola e a sua porta de entrada.
Ary discorre bastante enfaticamente sobre este ponto, considerando o cartel, o coração da Escola.
Ary também enfatiza a dificuldade inerente ao trabalho nos cartéis pela inversão de prioridade em relação aos interesses presentes nos fenômenos de grupo. Todo os efeitos de formação em uma caminhada analítica dependem de como se tratam estes fenômenos e a inserção na Escola. O tratamento que Lacan propõe para estes efeitos de identificações grupais é a criação deste mecanismo onde 4 se reúne em torno de um tema e escolhem mais um para descompletá-los quanto aos fenômenos grupais, priorizando a tarefa, e o trabalho que tem que ser levado a cabo. Esta é a questão que enlaça tema e tempo em um cartel.
A função do Mais Um também foi enfatizado quando ao estímulo ao trabalho, buscando vencer a indolência, tão presente antes que se comece verdadeiramente o investimento no proposto. Esse Mais Um tem uma dupla face, de pertencimento e de não pertencimento, faz laço com a Escola, quando é Membro da Escola, estimulando a produção de saber, mais que a aquisição de saber.
Entre produção de saber e aquisição de saber, há uma diferença fundamental, pois, pode-se adquirir saber, mas, produzir, demanda trabalho. Em um cartel, a tarefa do Mais Um busca descompletar o saber lançando os membros do cartel a um mais além, não se acomodando no saber constituído.
Ary Farias, tocando o valor do trabalho em cartel, nos leva a considerar que este está em linha com a questão fundamental da Escola de Lacan que é: o que é um analista? Esta pergunta que não cala está na porta de entrada e se passará a buscar responde-la durante todo o caminho na formação e um psicanalista.
“Isento de Solução”, Ary nos traz que o analista é um sujeito ‘isento de solução’ para que ele possa se autorizar a resistir a solução do Mestre, tão sedutor. Assim, o analista oferece uma escuta alforriada de clichês, da intenção de todos e do preconceito de cada um, que pode autorizar ao analista operar sem as ambições do eterno, na glória precária de cada sessão (inspirado em Carlos Drummond de Andrade).
Tocando a questão do passe e dos depoimentos dos AEs, ficou bastante claro o laço com a pergunta sobre o analista na Escola de Lacan.
Ary Farias encerrou a sua apresentação falando dos cartéis fulgurantes que se formarão em torno da nossa primeira Jornada de Cartéis que está arcada para se realizar em outubro, com a presença de Romildo do Rego Barros, em Brasília, sede da nossa Seção Leste-Oeste (em formação)
Noite de cartel- 8 de setembro de 2020.
Apresentação: Carla Serles
Coordenação: Ary Farias
Mais-Um: Relato de uma experiência
Por Fernanda Pires.
Ao final do mês de julho, o Diretor de Cartéis da SLOf, Ary Farias, enviou um e-mail a todos os membros que fossem Mais-Um, convidando-os a lançar alguma produção própria ou de algum cartelizante à conversação. Para Carla Serles, esse foi um mote que levou seu cartel a pensar na tessitura de um texto que abarcasse as leituras de cada cartelizante sobre os efeitos de formação ali advindos. Sua apresentação transmitiu a trajetória do abandono de uma escrita coletiva.
Aproveitar a escrita de todas tornou o texto “um pálido e insípido mosaico, que passava ao largo do intento de transmissão”; Optar-se pela escrita de uma com a colaboração e os vagalumes das outras, recaiu-se em uma obra desalumiada e infinita, que exigia correções e aclaramentos a cada vez que se retornava a leitura, configurando-se um contra-tempo lógico; Ensaiar algo “digamos democrático”, de forma que uma das cartelizantes, e não a escritora do texto, fosse a leitora, foi desastroso. “Linhas Nascentes” (título do texto) tornou-se refratário à apresentação e, portanto, linhas dejetas, já que perfazia um “ideal de transmissão”, pleno de sentidos e oco de fruição.
Desistir da apresentação nesse dia ressoava como uma saída cativante que se espreitava. O desejo de continuidade que persistia em uma das cartelizantes, “forjou algum lastro em mim”, como afirma Carla Serles.
Cabe salientar que, a forja desse cartel, dera-se no início da pandemia do coronavírus. “O encantamento com as linhas, reabsorvia as angústias e os medos em uma dimensão de solidariedade e no laço de amor ao mesmo objeto, gerando, temporariamente, a suspensão da transferência de trabalho.”
Manter a vivacidade do vazio, que incitava ao trabalho, foi a decisão para a escrita de um novo trabalho. “Essa ação não seria um tamponamento do vazio ou o engendramento de mais um discurso adormecido?… Se tivesse o estatuto de metáfora, em seu sentido de substituição, teria essa propriedade.”
Descartar o texto, já que não se produziam restos, e apoiar-se pela leitura do ocorrido foi o trabalho tentativa da Mais- Um para realocar o cartel como um dispositivo de desidentificação. A proposta do cartel foi, assim, reorientada visando o privilégio do heterogêneo, do díspar, da fratura da unidade do grupo.
As duas experiências que entusiasmavam a escrita inicial, referiam-se a tela em branco do computador que engendrou “a voz do silêncio” e a paixão pelo Nome-do-Pai que resultou na verificação da ética dos vazios. Optou-se por não mais escrevê-las. Clara Holguin faz uma equivalência entre a ética do cartel e a ética do sinthoma, afirmando que há uma “produção de um saber em uma enunciação que é própria de cada um”.
Dentre outros autores citados, Miller, em A Salvação pelos Dejetos, afirma que a via mais precária é a mais segura aos analistas. “Foi preciso que a psicanálise aparecesse com sua promessa de salvar pelos dejetos para que se percebesse que, até então só se havia procurado a salvação pelos ideais”. Para Roland Barthes, alguns textos tagarelas são frigidos, “apenas uma espuma de linguagem que se forma sob o efeito de uma simples necessidade de escritura”.
Para encerrar, nas palavras de Carla Serles, “se há algum tempo os cartéis me pareciam desinteressantes e me soavam como um automaton, essa experiência fez perturbações no hábito e convicções de sua relevância, assim como de sua indissociabilidade na formação.” “A lógica feminina do não-todo propicia trabalhadores decididos que se confrontem com o lúgubre, o desatino e a opacidade desse período, não sem tropeços, nem sem as suas próprias dores, mas com a inventividade de produções e operações que criem saídas singulares e inéditas para a clínica… Afinal, enquanto um real se irromper para um ser falante, a psicanálise feita à boa maneira, há de sobreviver”.
O evento contou com a participação de alguns membros vinculados à Seção Leste-Oeste (em formação) que teceram contribuições ao trabalho. As demais cartelizantes, Gize Bessa, Fernanda Pires e Helen Guerra, estavam presentes e, brevemente, puseram-se a transmitir o impossível de uma formação.