skip to Main Content

Amor e Nome-do-pai1

Alexandre Stevens – AME, Membro da ECF, NLS e da AMP

Amor omnibus idem”. É assim que se inicia o verbete  “amor’’ do Dictionnaire  philosophique  de Voltaire, na sua edição de 1769, La raison par l’alphabet. A tendência do amor é de ir em direção ao mesmo, é o que sublinha Voltaire. O mesmo na repetição de sua procura de eficácia biológica, orientada por uma tensão psíquica em direção ao parceiro que a espécie lhe designa – “você quer ter uma ideia do amor?Veja os pardais do seu jardim, veja os pombos, contemple o toro…’’ – sem que isso presuma necessariamente um gozo. O mesmo também no amor próprio: “Aqueles que disseram que o amor por nós mesmos é a base de todos os nossos sentimentos e de todas as nossas ações tiveram, portanto, razão …”

Eis então o que se traduz um século e meio mais tarde, em termos freudianos: o amor é sempre narcísico. No seu texto de 1914, “Narcisismo: uma introdução”, Freud é especialmente claro sobre esse aspecto da vida amorosa. Que a escolha de objeto se faça por apoio ou que ela seja narcísica, está sempre fundada sobre o narcisismo originário. Isso é ainda mais verdadeiro quando se trata do “tipo feminino mais frequente (….) o mais puro e mais autêntico. (…) Tais mulheres não amam, estritamente falando, senão elas mesmas com uma intensidade comparável à do amor do homem por elas”.

Mesmo quando o amor se sustenta no outro (como um apoio), para a escolha de objeto, ele não é menos narcísico, uma vez que o que ele procura aí é o retorno do amor. Como comenta Lacan  no Seminário 1: “o amor  daquele que deseja ser amado é, essencialmente, uma tentativa de capturar o outro em si mesmo”. Esse caráter narcísico de todo amor ou, ainda, esse fundamento que todo amor encontra no espelho de Narciso, foi percebido antes de Freud e Voltaire. Alguns poemas do amor cortês testemunham isso.

O amor  tampouco  prescinde da cultura. Os homens têm,portanto,“aperfeiçoado o amor” (Voltaire) e, “se não houvesse cultura, não haveria a questão do amor”¹. Lembremos, aqui, apenas as múltiplas referências que Lacan faz ao amor cortês como um momento de invenção de um novo laço, de um além do erótico, até chegar a formular, no seminário “Les non-dupes errent2, que “o amor é o amor cortês” na medida que representa o impossível do laço sexual com o objeto, a relação sexual que não existe.

Pelo fato mesmo da inexistência dessa relação, “O gozo do Outro (…), do corpo do Outro, (…) não é signo do amor”3. Com efeito, o gozo em questão só é atingido aí, onde existe relação, não sendo o amor, desde então, mais necessário para supri-la. É o caso da psicose de Schreber, tal como foi desenvolvida por Jacques-Alain Miller4. O homem, assim, só encontra “A mulher” na psicose.

Portanto, o amor não é somente narcísico. Ele tem a função de suplência. Na falta da existência da relação sexual, é o amor que vem em suplência, certamente na ilusão. Ilusão de que essa famosa relação existe, que nós formamos um e que nos compreendemos aquém das palavras, mas não somente na ilusão. O amor pretende também ser signo, gozo e compromisso, isto é, sintoma para suprir efetivamente a relação que falta entre os sexos.

Que o signo de amor seja esperado pelo parceiro, além de suas declarações de intenção amorosa, é um fato clínico patente. O signo não é o sentido e o dom não  é o amor. O único signo de amor que efetivamente vale é dar o que não se tem, tal como precisa Lacan: “não existe maior dom possível, maior signo de amor, que o dom do que não se tem”5. Ou ainda: “Amar é dar a alguém que, por sua vez tem ou não tem o que está em causa, mas é seguramente dar o que não se tem”6. Que o homem apressado ofereça seu tempo; a mulher pobre, sua falta a ser; a infiel, sua fidelidade; a inconstante, sua constância…. Mas esse signo envolve um paradoxo, pois, ao dar o que não se tem, pode-se perceber o que não se tem. Lacan evoca assim “o valor de dependência representado, para a criança, no amor excessivo do pai pela mãe. (…) Na medida em que o pai se mostra verdadeiramente  amante diante da mãe, ele é suspeito de não ter”7.

O aforismo de Lacan, “só o amor permite ao gozo condescender ao desejo”8, é de uma ordem completamente diferente daquela do signo de amor. Ele introduz o amor na sua função de véu em relação ao real, quer dizer, em relação ao gozo. Jacques-Alain Miller faz o seguinte comentário: “na verdade do amor, o objeto real é elevado à dignidade de objeto simbólico”, é o que permite passar da satisfação da necessidade à metonímia do desejo9. O amor e a  angústia estão ambos entre o gozo e o desejo. O amor como véu, a angústia como o que não se engana.

No Seminário 20, Lacan deixa explícito o laço entre o amor e gozo. Não se trata do mito de Aristófanes, mas antes da disjunção dos dois lados do drama sexual.

O lado macho, “o que ele aborda é a causa de seu desejo (…), o objeto a. Eis aí o ato de amor. Fazer amor, como o nome indica, é poesia. Mas existe um mundo entre a poesia e o ato. O ato de amor é a perversão polimorfa do macho…”10. O ato de amor do macho é o gozo fálico, na medida em que é autístico, sem Outro, sem a inclusão do amor e passando  apenas pela causa do desejo. Trata-se no máximo, do amor da lâmina, com o qual Lacan responde a Aristófanes no Seminário11. Um amor sem amor, que prescinde do Outro, é o gozo do idiota; o lado homo sendo aquele que se contenta com o silêncio. Lacan vai além da posição de Freud na mais comum das degradações do amor.

Do lado feminino, o amor está incluído no gozo. Em outros termos: ele não pode ser sem palavras, pois, em efeito, “falar de amor é em si mesmo um gozo”11. E inclusive: “é falando que se faz amor”12. Falar implica o Outro, o hétero. É o que permite a Lacan escrever: “chamamos heterossexual por definição aquele que ama as mulheres, seja qual for seu próprio sexo”13. O amor, para Lacan, está forçosamente do lado feminino, com o que ele contém de obra civilizatória. Aqui não há silêncio possível, mas antes, um gozo que pode chegar à mística. O gozo feminino, O Outro gozo do qual Lacan nos fala no Seminário 20 é suplementar ao gozo fálico que igualmente não escapa às mulheres. Suplementar se opõe aqui ao complementar. O complemento asseguraria uma relação (proporção matemática) entre os sexos.  O suplemento não assegura nada disso. Ele é uma bricolagem de sobras.

O comentário de Jacques-Alain Miller sobre esse gozo suplementar, no texto “Um répartitoiresexuel” é especialmente esclarecedor sobre esse lugar do amor: “esse gozo suplementar, que aqui escrevemos A (barrado), de fato, tem duas faces. De um lado, é o gozo do corpo, no que ele não está limitado ao órgão fálico. (…)  Mas, de outro (…) é o gozo da fala”.

Pode-se extrair daí a erotomania, como o faz, Jacques-Alain Miller: “Trata-se exatamente do gozo erotômano, no sentido em que é um gozo que necessita que seu objeto fale”. É o que acontece em relação às posições de amor na psicose, que vão da erotomania à idealização delirante do objeto de amor. Assim, em Nerval, é o ideal da Dama que provoca o desencadeamento quando esse ideal é degradado ao nível de uma mulher qualquer. O amor como deslumbramento apresenta, então, sua face de devastação. Essa devastação não está presente somente na psicose. Ela é simplesmente uma face do amor. Se uma mulher pode ser um sintoma para um homem, um homem pode ser uma devastação para uma mulher. Dessimetria do amor. Mas essa dessimetria não impede que o amor possa ser levado ao compromisso. Nos diferentes momentos do ensino de Lacan, o amor não existe sem a palavra que engaja o ser: da fala plena ao sujeito da enunciação e ao valor de exceção do dizer.

Desta forma, no Seminário1, Lacan afirma: “O dom ativo do amor visa o outro, não na sua especificidade(narcísica), mas em seu ser . “Conhecemos a fórmula testemunho da fala plena em seu valor de reconhecimento, ao mesmo tempo em que ela incide sobre o ser do sujeito: “tu és minha mulher”. O dom ativo que evoca Lacan situa-se em relação ao plano simbólico, em seu valor de fala plena. Isso, no Seminário “Les non-dupeserrent” torna-se: “o casamento é o amor… como enganação recíproca”.Trata-se de poder aceitar ser tolo, sobretudo de uma mulher, pois os não-tolos (…), aqueles que conservam toda sua liberdade de ação(estão necessariamente no) erro, ou seja, eles erram. É a maneira com que Lacan precisa que uma mulher é um dos Nomes (-do-Pai)do qual é necessário ser tolo.

Mas o amor é também um dos Nomes-do-Pai,  é o último capítulo do Seminário20. O impossível da relação sexual encontra seu limite e sua resposta na ilusão de que essa relação existe pelo encontro amoroso, “o encontro no parceiro  dos sintomas, dos afetos, de tudo que em cada um marca o traço de seu exílio (…) da relação sexual”. Entretanto, todo amor consagra-se a transformar essa contingência em necessidade em um “não cessa”. “Tal é o substituto que (…) faz o destino e também o drama do amor”. É o amor como sintoma, substituindo, tal como um dos Nomes-do-Pai, o real do “não existe”.

Na “Nota Italiana”, ainda em 1973, Lacan propõe tentar “aumentar os recursos graças aos quais poder-se-ia prescindir dessa relação desgastante para tornar o amor mais digno que o amontoado de bobagens que o constitui atualmente”.Podemos reconhecer aí uma evocação de um novo amor, aquele do poema de Rimbaud – “A uma razão”15:

Um toque do seu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma nova harmonia.
Um passo teu recruta os novos homens, e os põe em marcha.
Tua cabeça avança: o novo amor! Tua cabeça recua, – o novo amor!
“Muda nossos destinos, passa a crivo as calamidades, a começar pelo tempo”, cantam estas crianças, diante de ti. “Semeia não importa onde a substância de nossas fortunas e desejos”, pedem-te.
Chegada de sempre, que irás por toda parte.

 


Referências:
1LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005(1962-63).
2LACAN, J. “Les non-dupes errent”. (Seminário Inédito). (1973-74).
3Idem. O Seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.(1972-73).
4MILLER, J.A. Curso de Orientação Lacaniana, aula 9 de julho de 1999 (inédito).
5LACAN, J. O Seminário, livro 4:  A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995(1956-57).
6Idem. O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1999(1957-58).
7Idem. Ibidem.
8Lacan, J. Op. Cit. 2005 (1962-63).
9MILLER, J.A. Cause  Freudienne. (58). 2004.
10Lacan, J. Op. Cit. 2005 (1962-63).
11Lacan, J. Op. Cit. 1985 (1972-73).
12LACAN, J. O Seminário, livro 19: “Ou pire”. Aula de 04/5/72. ( Inédito )
13LACAN, J. “O Aturdito”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
14LACAN, J. “Les non-dupes errent”. (Seminário Inédito). (1973-74).
15RIMBAUD, A. Uma temporada no inferno e iluminações. 2ª ed. (Trad. L. Ivo). Rio de janeiro: Francisco Alves, p.95.
Back To Top