15 de setembro de 2022
Amor e devastação nas mulheres
Por Jaqueline Coelho
“O parceiro-sintoma do homem tem a forma fetiche, enquanto o parceiro-sintoma do falasser feminino tem a forma erotomaníaca”[1]
Lacan avançou na discussão sobre a sexualidade feminina quando, a partir das fórmulas da sexuação, bipartiu o gozo feminino, situando-o, de um lado em relação ao gozo fálico e, de outro lado, em relação a um gozo ilimitado, opaco, suplementar, que não se deixa apreender pelas vias do significante. A exceção ao todo homem é castrado, inscrita sob a fórmula existe um que não seja castrado entre todos os outros castrados, referente ao mito do pai gozador, situa o homem em uma norma e lógica fálicas, permitindo-lhe se localizar dentro de um conjunto. No caso das mulheres, a ausência da exceção, marcada pela inscrição segundo a qual não existe uma mulher que não seja submetida à castração, impede a formação do conjunto das mulheres. Isso leva a que elas devam ser tomadas uma a uma e justifica a célebre asserção de Lacan conforme a qual A mulher não existe. Esta indica, precisamente, a ausência, no campo da linguagem, de um significante que pudesse dizer dA mulher.
Entretanto, de acordo com Lutterbach[2], se não podemos falar dA mulher, é possível localizar alguns momentos de ultrapassagem, em que “uma mulher pode abandonar seu laço com o falo e sacrificar todo o seu ser (…), cair inteiramente num Outro Gozo, numa espécie de loucura” (p. 66). Esses fenômenos só podem se dar em breves e fulgurantes momentos, caracterizados por um desenlace de uma mulher em relação à norma fálica, onde vemos comparecer o que Lacan chamou de uma verdadeira mulher. O lugar de verdadeira mulher não perdura no tempo, o que leva Lutterbach a nos indicar que uma mulher “só pode existir inteiramente de maneira fugaz e devastadora[3]” (p. 67). Por esse motivo, Miller[4] nos esclarece que “não se trata de construir o conceito de a verdadeira mulher. A verdadeira mulher só se pode dizer uma a uma e numa ocasião, porque não é certo que uma mulher possa se manter nessa posição” (p. 21).
Sobre o assunto, a mais clássica representação é encontrada na figura de Medéia, que foi capaz de sacrificar os próprios filhos, uma vez abandonada por Jasão. Na mesma via, Madeleine, esposa de Gide, é reportada por ter queimado as cartas de amor que ele lhe endereçara, ao saber da paixão dele por um jovem, com quem viajaria. As cartas de amor, seu bem mais precioso, são sacrificadas, nesse lampejo em que Madeleine abandona as referências fálicas para se entregar a um gozo louco, ilimitado.
Dominique Miller[5] nos ensina que “o amor é o registro que privilegia para as mulheres esses estados de absoluto”. A autora lembra que um homem pode ocupar o lugar de exceção na vida amorosa de uma mulher, tendo sido aquele que “despertou o que parece ocupar, na estrutura, o papel que deveria ter o significante maior da feminilidade que falta.” Por esse motivo, essa relação tão estreita entre a mulher e o amor, sendo comum afirmarmos que algumas mulheres amam o amor, com o qual estabelecem uma parceria mais efetiva do que com o próprio amado. Muito orientadora, Miller arremata ainda que “à falta de uma relação sexual que existisse, algumas mulheres estabelecem uma relação de amor real onde se disputam a devastação e o êxtase”.
É nesse sentido que Lacan nos ensina que não há limites ao que uma mulher poderá oferecer de si a um homem, podendo sacrificar sua reputação, seus filhos, seus bens materiais, etc. Predomina, portanto, na mulher, a forma erotomaníaca de amar, caracterizada pela exigência a um amor ilimitado e insaciável, em que vigora uma demanda infinita rumo à certeza de ser amada.
Jacques-Alain Miller[6] desliza entre os termos devastação (ravage), arrebatar (ravir), deslumbramento (ravissiment), mística e êxtase, situando-os do lado do infinito. Ele sustenta a devastação como o outro lado do amor, já que ambos comungam o mesmo princípio, a saber, o Ⱥ (A barrado).