15 de setembro de 2022
Abismos a meus pés
Por Carla Serles
António Emílio Leite Couto, Mia Couto, o escritor moçambicano, que também ama o Brasil, gostava das histórias contadas, por sussurros e murmúrios, pelas mulheres, na cozinha de sua casa. Diz ele que, do lado do pai, no escritório, as falas eram cheias de certeza, em voz alta, o que nunca provocou o seu fascínio.
Mia considera o universo feminino como uma espécie de gênese de sua vida de poeta. Conta, no entanto, que teve dificuldades de escrever personagens femininos, sendo filho de uma época em que os homens possuíam diretrizes determinadas sobre a posição masculina: máscula, viril, privada de lamúrias ou lágrimas. Assim, foi preciso empreender um esforço íntimo para chegar a uma verdade sobre o ser de uma mulher: “eu tinha medo dessa fronteira, de deixar de saber quem eu era, me perder de mim”.
Em uma entrevista recente, diz que quer ser muitas coisas e que não ser escritor e ser escritor, ou seja, essa circularidade espaço-temporal, permite que ele não tenha uma identidade única: “quero ser muitas coisas. Rechaço as classificações e a mecânica de ver o mundo”.
Mia Couto é autor de uma extensa obra, para essa ocasião recorto fragmentos de seu livro: Antes de nascer o mundo.
Mwanito, o afinador de silêncios, viu uma mulher pela primeira vez quando tinha onze anos de idade:
“Me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas. Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera um nome ao lugarejo. Simplesmente chamado assim: “Jesusalém. Aquela era a terra onde Jesus haveria de descruxificar. E pronto, final”.
“Meu velho, Silvestre Vitalício, nos explicara que o mundo terminara e nós éramos os últimos sobreviventes… Em poucas palavras, o inteiro planeta se resumia assim: despido de gente, sem estrada e sem pegada de bicho. Nessas longínquas paragens, até as almas penadas já se haviam extinto”.
“Foi então que sucedeu a aparição: surgida do nada, emergiu a mulher. Uma fenda se abriu a meus pés e um rio de fumo me neblinou. A visão da criatura fizera com que, de-repente, o mundo transbordasse das fronteiras que eu tão bem conhecia”.
“De soslaio, olhos semicerrados, enfrentei a intrusa”.
“Apareceu-me fugir, mas as pernas eram raízes seculares”.
Transcorridos vários anos Mwanito, de volta a sua cidade natal, conhece Noci, cuja ternura e o afinado silêncio de seus braços, o conduz a confirmação de que seu pai estava errado: “o mundo não morreu. Afinal, o mundo nunca chegou a nascer”.
Sofrendo de lonjuras subjetivas, aquilo que se chama popularmente de saudades, Mwanito dirá que as outras mulheres farão ressurgir uma impressão oriunda do primeiro encontro com uma mulher: “o rasgar de abismos a meus pés”.