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A psicanálise e os debates sobre gênero

Por Cristina Alves
Foto de Ana Paula Fernandes Resende
Foto de Ana Paula Fernandes Resende

Chamada por alguns de “linguagem neutra”, mas tecnicamente mais nomeada de “linguagem inclusiva”, as novas formas de nomeação dos sujeitos no discurso social têm ganhado força nas redes sociais e movimentado debates nas escolas. Fake News sobre projetos de lei que querem impor “a terrível ideologia de gênero nas escolas” são compartilhadas com toda a força do ódio à diferença, propagado por aqueles que usam o outro como objeto de gozo numa via mais perversa que neurótica, talvez.

No entanto, contrariando o temor supostamente legítimo de alguns, a linguagem inclusiva, isto é, não-binária, está um pouco distante de se tornar norma-padrão, adotada em grade curricular e cobrada nos vestibulares, por exemplo. Não há sequer consenso em relação às formas de se fazê-la em cada língua. Em português, por exemplo, uns defendem a troca da desinência de gênero -a e -e para -u, no pronome elu(s); outros defendem que o ideal seria trocar o pronome “ele” por “ile”, já que o -i marcaria o neutro. De todo modo, é bom lembrar que, para os estudos linguísticos, as línguas são dinâmicas, posto que mudam conforme as necessidades dos falantes e as contingências socioculturais, econômicas etc de cada época. O verbo “deixar”, hoje inconcebível de outra forma para a maioria dos falantes, já foi “leixar” até o início do século XV. É por essa razão, inclusive, que o linguista Marcos Bagno[1] defende que “o purista é um personagem trágico”, ou seja, fadado ao fracasso, à frustração.

Nesse sentido, serão também os psicanalistas personagens trágicos no que se refere às teorias de gênero? Sabemos que as acusações agressivas de que a psicanálise é misógina e transfóbica, de Freud a Lacan, são fundadas ou no mais profundo desconhecimento dos textos de Freud e Lacan, ou na tentativa do apagamento da diferença. Como Éric Laurent disse em sua conferência X ENAPOL[2], a psicanálise freudiana é mesmo falocêntrica, ao que ele interpõe a contribuição de Lacan para uma mudança de perspectiva, quando coloca o gozo feminino em evidência no falasser.

Retomemos que a virada epistemológica no último ensino de Lacan[3] está ligada também a uma mudança na significação do falo, o qual deixa de ser visto apenas como o significante que dá suporte à identificação e passa a ser inscrito como uma função de gozo (a função fálica). Nesse momento do ensino, ter o falo ou ser o falo não são mais elementos simbólicos que distinguem homens e mulheres.

A relevância dessa mudança está justamente no fato de que a distinção entre os sexos passa a ser uma distinção entre os modos de gozo: masculino (fálico) e feminino, não-todo fálico, isto é, “não-todo a se situar na função fálica” (1972-1973, p. 78-79). Assim, Lacan acaba constatando que o gozo sexual masculino bem como o feminino podem, de certo modo, habitar o mesmo sexo, sobretudo quando afirma que existe “a parte mulher dos seres falantes” e “parte dita homem” (p. 86). É uma transição entre a sexualidade e a sexuação, isto é, masculino e feminino deixam se ser uma mera oposição sexual (ainda que inconsciente) e tornam-se uma diferenciação de modos de gozo. Para os lacanianos, sujeitos sob transferência com esse saber, o mistério da sexuação emerge daí: não há relação sexual, quer dizer, um ser falante (um sexo) não sabe fazer existir a relação com outro ser falante (outro sexo).

Todavia, os ativistas das teorias de gênero, definitivamente não lacanianos, podem insistir no fato de que a própria escolha dos significantes “homem” e “mulher” já é excludente, já que é binária. “Por que Lacan escolheu um lado feminino e outro masculino da tabela da sexuação, senão por uma lógica patriarcal?”, talvez eles digam. Ora, binária, uma vez que divide a sexuação em duas partes, a tabela de Lacan realmente é. E talvez a escolha dos significantes também indique algo que possa ser questionado e atualizado com a subjetividade contemporânea. Entretanto, é irrefutável que o binarismo dessa tabela não diz respeito aos gêneros, muito menos ao sexo biológico; trata-se do binarismo entre dois modos de gozo (sendo um deles bipartido, inclusive), intrínsecos ao psiquismo humano – ao menos dentro da psicanálise.

Elisa Alvarenga[4], em entrevista à comissão das III jornadas da Seção Leste-Oeste, esclarece a leitura contemporânea do mistério que pode ser lido com a sexuação construída no último ensino de Lacan:

“…ele introduz para cada ser falante a possibilidade de passar pelo falo ou não passar pelo falo. E ainda mais passando pelo falo, de ir além do falo, que seria então o lado feminino das fórmulas da sexuação. Então, Lacan não faz uma simetria entre o lado masculino e o lado feminino, mas ele abre a possibilidade de pensarmos a sexuação para além da marca fálica que seria uma significação a partir do Nome-do-Pai, a partir da metáfora paterna. Então, a importância da sexuação e das fórmulas da sexuação é ir além do pai, ir além do patriarcado, ir além da sexualidade pensada a partir da referência masculina, paterna e fálica.”

Desse modo, não me parece que os psicanalistas são puristas, “fadados ao fracasso” de seu suposto discurso patriarcal ultrapassado. Estamos, sim, atentos à subjetividade de nossa época, mas não temos transferência com o ódio à diferença, defendido pelos ditos conservadores, tampouco com o apagamento do que é intrínseco ao inconsciente, o que parece ser defendido pelos ativistas das teorias de gênero.

Nessa falta de consenso sobre a sexualidade humana, será possível algum diálogo, alguma intersecção?

[1] BAGNO, M. O purista é um personagem trágico. Disponível em: https://brasiliarios.com/colunas/66-marcos-bagno/551-o-purista-e-um-personagem-tragico

[2] LAURENT, E. (2021). Entrevista à Rede Universitária Americana. Em: ENAPOL. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SKKsaJupVw0&t=328s   Acesso em 29/08/2022.

[3] LACAN, J. (1972/1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

[4] ALVARENGA, ELISA. Entrevista dos membros do cartel da comissão científica das III Jornadas da Seção Leste-Oeste. Disponível em: https://www.ebp.org.br/slo/index.php/2022/08/23/entrevista-com-elisa-alvarenga-sobre-o-eixo-tematico-4-as-formulas-da-sexuacao/ Acesso em 29/08/2022.

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