15 de setembro de 2022
A psicanálise e os debates sobre gênero
Por Cristina Alves
![Foto de Ana Paula Fernandes Resende](https://www.ebp.org.br/slo/wp-content/uploads/2022/09/arranjos09-005.jpg)
Chamada por alguns de “linguagem neutra”, mas tecnicamente mais nomeada de “linguagem inclusiva”, as novas formas de nomeação dos sujeitos no discurso social têm ganhado força nas redes sociais e movimentado debates nas escolas. Fake News sobre projetos de lei que querem impor “a terrível ideologia de gênero nas escolas” são compartilhadas com toda a força do ódio à diferença, propagado por aqueles que usam o outro como objeto de gozo numa via mais perversa que neurótica, talvez.
No entanto, contrariando o temor supostamente legítimo de alguns, a linguagem inclusiva, isto é, não-binária, está um pouco distante de se tornar norma-padrão, adotada em grade curricular e cobrada nos vestibulares, por exemplo. Não há sequer consenso em relação às formas de se fazê-la em cada língua. Em português, por exemplo, uns defendem a troca da desinência de gênero -a e -e para -u, no pronome elu(s); outros defendem que o ideal seria trocar o pronome “ele” por “ile”, já que o -i marcaria o neutro. De todo modo, é bom lembrar que, para os estudos linguísticos, as línguas são dinâmicas, posto que mudam conforme as necessidades dos falantes e as contingências socioculturais, econômicas etc de cada época. O verbo “deixar”, hoje inconcebível de outra forma para a maioria dos falantes, já foi “leixar” até o início do século XV. É por essa razão, inclusive, que o linguista Marcos Bagno[1] defende que “o purista é um personagem trágico”, ou seja, fadado ao fracasso, à frustração.
Nesse sentido, serão também os psicanalistas personagens trágicos no que se refere às teorias de gênero? Sabemos que as acusações agressivas de que a psicanálise é misógina e transfóbica, de Freud a Lacan, são fundadas ou no mais profundo desconhecimento dos textos de Freud e Lacan, ou na tentativa do apagamento da diferença. Como Éric Laurent disse em sua conferência X ENAPOL[2], a psicanálise freudiana é mesmo falocêntrica, ao que ele interpõe a contribuição de Lacan para uma mudança de perspectiva, quando coloca o gozo feminino em evidência no falasser.
Retomemos que a virada epistemológica no último ensino de Lacan[3] está ligada também a uma mudança na significação do falo, o qual deixa de ser visto apenas como o significante que dá suporte à identificação e passa a ser inscrito como uma função de gozo (a função fálica). Nesse momento do ensino, ter o falo ou ser o falo não são mais elementos simbólicos que distinguem homens e mulheres.
A relevância dessa mudança está justamente no fato de que a distinção entre os sexos passa a ser uma distinção entre os modos de gozo: masculino (fálico) e feminino, não-todo fálico, isto é, “não-todo a se situar na função fálica” (1972-1973, p. 78-79). Assim, Lacan acaba constatando que o gozo sexual masculino bem como o feminino podem, de certo modo, habitar o mesmo sexo, sobretudo quando afirma que existe “a parte mulher dos seres falantes” e “parte dita homem” (p. 86). É uma transição entre a sexualidade e a sexuação, isto é, masculino e feminino deixam se ser uma mera oposição sexual (ainda que inconsciente) e tornam-se uma diferenciação de modos de gozo. Para os lacanianos, sujeitos sob transferência com esse saber, o mistério da sexuação emerge daí: não há relação sexual, quer dizer, um ser falante (um sexo) não sabe fazer existir a relação com outro ser falante (outro sexo).
Todavia, os ativistas das teorias de gênero, definitivamente não lacanianos, podem insistir no fato de que a própria escolha dos significantes “homem” e “mulher” já é excludente, já que é binária. “Por que Lacan escolheu um lado feminino e outro masculino da tabela da sexuação, senão por uma lógica patriarcal?”, talvez eles digam. Ora, binária, uma vez que divide a sexuação em duas partes, a tabela de Lacan realmente é. E talvez a escolha dos significantes também indique algo que possa ser questionado e atualizado com a subjetividade contemporânea. Entretanto, é irrefutável que o binarismo dessa tabela não diz respeito aos gêneros, muito menos ao sexo biológico; trata-se do binarismo entre dois modos de gozo (sendo um deles bipartido, inclusive), intrínsecos ao psiquismo humano – ao menos dentro da psicanálise.
Elisa Alvarenga[4], em entrevista à comissão das III jornadas da Seção Leste-Oeste, esclarece a leitura contemporânea do mistério que pode ser lido com a sexuação construída no último ensino de Lacan:
“…ele introduz para cada ser falante a possibilidade de passar pelo falo ou não passar pelo falo. E ainda mais passando pelo falo, de ir além do falo, que seria então o lado feminino das fórmulas da sexuação. Então, Lacan não faz uma simetria entre o lado masculino e o lado feminino, mas ele abre a possibilidade de pensarmos a sexuação para além da marca fálica que seria uma significação a partir do Nome-do-Pai, a partir da metáfora paterna. Então, a importância da sexuação e das fórmulas da sexuação é ir além do pai, ir além do patriarcado, ir além da sexualidade pensada a partir da referência masculina, paterna e fálica.”
Desse modo, não me parece que os psicanalistas são puristas, “fadados ao fracasso” de seu suposto discurso patriarcal ultrapassado. Estamos, sim, atentos à subjetividade de nossa época, mas não temos transferência com o ódio à diferença, defendido pelos ditos conservadores, tampouco com o apagamento do que é intrínseco ao inconsciente, o que parece ser defendido pelos ativistas das teorias de gênero.
Nessa falta de consenso sobre a sexualidade humana, será possível algum diálogo, alguma intersecção?
[1] BAGNO, M. O purista é um personagem trágico. Disponível em: https://brasiliarios.com/colunas/66-marcos-bagno/551-o-purista-e-um-personagem-tragico
[2] LAURENT, E. (2021). Entrevista à Rede Universitária Americana. Em: ENAPOL. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SKKsaJupVw0&t=328s Acesso em 29/08/2022.
[3] LACAN, J. (1972/1973) O seminário, livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
[4] ALVARENGA, ELISA. Entrevista dos membros do cartel da comissão científica das III Jornadas da Seção Leste-Oeste. Disponível em: https://www.ebp.org.br/slo/index.php/2022/08/23/entrevista-com-elisa-alvarenga-sobre-o-eixo-tematico-4-as-formulas-da-sexuacao/ Acesso em 29/08/2022.