15 de setembro de 2022
A difícil tarefa do tornar-se e a adolescência como sintoma
Por Gabriel Caixeta
Da delicada escrita do escritor Fernando Sabino, em “O grande mentecapto”, poderíamos recortar o momento em que Geraldo Viramundo virou homem de repente e percebeu, minutos mais tarde, que não era mais menino, para discutir aquilo que Lacadée (2011) chamou de a mais delicada das transições. Esta, que diz respeito justamente à passagem da criança para o adulto, ao tornar-se homem ou mulher, e que envolve um árduo trabalho psíquico para o sujeito, uma vez que o que está em jogo aí é o próprio real que surge na puberdade.
Acompanhando os textos freudianos sobre a relação do sexual com a etiologia da neurose, fica evidente que o sexual deixa suas marcas ao ser falante. Na infância, diante de seu aparecimento, a criança, impossibilitada de acessar um saber sobre isso, formula suas teorias como tentativa de resposta. Na adolescência, com a irrupção da puberdade, esse novo, não tão novo assim, aparece fazendo com que o sujeito precise inventar um modo de se posicionar na partilha sexual, o que não é sem embaraços.
Para Miller (2020), quando se trata de pensar a adolescência, seria importante nos atermos a três questões: a saída da infância, a diferença dos sexos e a imiscuição do adulto na criança, o que coloca em questão os semblantes como aqueles que darão consistência à identificação sexual viril ou feminina (Roy, 2019), questões que são presentificadas na puberdade. Dessa forma, de acordo com Lacadée (2011) “a adolescência seria o momento lógico em que opera uma desconexão para o sujeito entre seu ser de criança e seu ser de homem ou de mulher” (p. 64). Nesse sentido, o termo “adolescência” seria um significante provindo do Outro que buscaria dar contorno a esse tempo que é para cada um (Lacadée, 2011).
Lacadée (2011) retoma a definição dada por Freud (1905/1996) “metamorfose da puberdade”, esclarecendo que há aí uma reatualização das escolhas da infância concernente aos objetos da pulsão, sejam eles hetero ou homossexuais, bem como à escolha de posição em relação ao sexo, o que deixa o sujeito dividido entre situar-se a serviço da pulsão parcial e se pôr a serviço da vontade de gozo (Lacadée, 2011, p. 68). Assim, se antes tínhamos o discurso, representado inclusive pela função da família, como algo importante e que poderia servir como suporte para o que do gozo agita os adolescentes, o que vemos hoje é que esse não consegue ajudá-los, e eles ficam imersos em seus significantes desconexos (Lacadée, 2011).
Aqui, seria possível afirmar que, quando dizemos que na puberdade tratar-se-ia de um despertar, dizemos de um despertar da pulsão que provoca estranheza ao adolescente, lançando-o ao trabalho de construir alguma coisa que dê conta disso. Dessa forma, parece pertinente pensar, tal como Miller (2020) propõe em seu texto En dirección a la adolescencia, que, diante desse novo — o despertar da pulsão que convoca o sujeito a se haver com sua posição subjetiva diante da diferença sexual — é escancarado pelo real da puberdade, que a pensássemos como uma construção.
Tais formulações nos orientam a pensar menos a adolescência como uma fase ligada ao desenvolvimento, como a psicologia nos ensina, e mais como um arranjo, como um sintoma, que cada sujeito irá construir para dar conta da inexistência da resposta sobre a questão sexual. Assim, a adolescência seria uma nomeação livre de significação, e cada sujeito irá lhe dar substância a seu próprio modo. Diante do não saber sua posição sexuada, de não saber a escolha de objeto, a adolescência seria, nessa orientação, um sintoma, “a enumeração de uma série de escolhas sintomáticas em relação a esse impossível encontrado na puberdade . . . Esse impossível é uma das fórmulas do real; essa ausência de saber, no real, quanto ao sexo; é a não relação sexual” (Stevens, 1998/2004, p. 31).
Nesse sentido, caberia menos dizer “A” adolescência, enquanto universal, para pensá-la no caso a caso, ou seja, enquanto adolescências, construída de forma singular por cada sujeito, o que nos leva, segundo Stevens (1998/2004), a considerar a clínica da adolescência mais próxima a uma clínica do sintoma por “tratar-se de uma resposta individual como escolha e resposta de um sujeito, levando-se em conta que há diferenças, conforme as escolhas já colocadas pelo sujeito, entre neurose e psicose” (p. 32).
Quanto ao real da puberdade, ao qual a adolescência vem como uma tentativa de resposta, Stevens (1998/2004) nos lembra que, mais do que a questão orgânica, trata-se do novo para o qual o sujeito não tem uma resposta pronta, ou seja, trata-se da eclosão, a qual a fantasia infantil falha em contornar, possibilitando que o sujeito possa construir sentidos e metáforas. É importante destacar que a fantasia, segundo nos ensinou Lacan (1967/2003, p. 259), seria uma “janela para o real”, aquilo que enquadraria o real, retirando um pouco da sua consistência avassaladora — na medida em que ele impõe o sem sentido e o vazio de significações — e servindo como anteparo para o sujeito, fixando-o no campo da realidade. É a fantasia, como o recurso que possibilita ao sujeito construir explicações para o que lhe acontece, que permitiria certa segurança diante da emergência desse novo.
Poderíamos localizar esse novo justamente na subjetivação do sexo, na relação do sujeito com seu corpo, com o Outro e com o gozo. Esse novo “mais do que o órgão, é o reaparecimento, para o sujeito, de sua falha de saber no real” (Stevens, 1998/2004, p. 33). E, quanto a esse real sobre o qual o saber falha, há sempre um saber a saber, que se constrói, por exemplo, no encontro com um analista. E, quando falamos disso, poderíamos dizer que, frente ao não saber no real, é cada um por si, não sem o encontro com um Outro, o analista, por exemplo.
É um novo que resiste ao enquadramento da fantasia, que surge da discordância entre o imaginário e o simbólico, encarnado na modificação da imagem que escancara o fato de que não se “é mais uma criança como as outras, mas que se vai tornar-se um homem ou mulher” (p. 34), deixando o sujeito à mercê do não saber “tornar-se”, que faz vacilar também as identificações sustentadas no laço com o Outro.
Lacadée (2011) toma a adolescência como uma transição, a mais delicada delas, e se serve desse significante “transição” para dizer daquilo que já encontramos em Freud 1905/1996) quanto à puberdade. Para Lacadée, a transição especifica “a mudança que advém na criança a partir de um real, mudança marcada pela dificuldade experimentada pelo sujeito em continuar se situando no discurso que, até então, dava a ele uma ideia de si mesmo” (p. 33). Tal comentário deixa como norteador o fato de que, quanto ao tornar-se, isso só se dá pela via da construção, de um lado do sintoma, e, do outro, dos semblantes possíveis quanto ao ser homem ou mulher, que são apreendidos da cultura e da relação do sujeito com o lado do adulto, no qual o gozo sexual se encontra solidário de um semblante (Roy, 2019). O que se evidencia é que não há um saber preexistente no qual cada sujeito pode se amparar, que diga inequivocadamente como “tornar-se” — não há um manual, portanto o que há é a não relação sexual.