Parceiro-sintoma ou parceiro-devastação?
Elisa Alvarenga (AME-EBP/AMP)
Temos o hábito de pensar, a partir das contribuições de Freud à psicologia do amor, assim como das tábuas da sexuação do Seminário 20, o parceiro sintoma do lado do homem, que faz de uma mulher a causa do seu desejo, buscando nela o objeto do seu fantasma ($<>a), assim como o parceiro-devastação do lado da mulher, cujo gozo se divide entre o falo buscado no homem e o ilimitado de S(A/). As figuras da mulher sintoma e do homem devastação do Seminário 23, às quais Jacques-Alain Miller dá um novo colorido em O osso de uma análise, não deixam de confirmar essa leitura.
Proponho-lhes, então, o caso de um homem, ficção de Haruki Murakami no livro Homens sem mulheres[1], que nos convida, à maneira de Freud, a interrogá-lo como um caso em contradição com a teoria analítica. O conto “Um órgão independente” nos surpreende ao colocar em cena o não-todo do gozo feminino, não só do lado da mulher, mas do lado do próprio homem, devastado pelo amor a uma mulher que o deixa cair.
Trata-se de um cirurgião plástico bem-sucedido, celibatário convicto, que só sai com mulheres comprometidas, colocando aparentemente em cena a condição de amor relatada por Freud em seu texto “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens”. Durante 30 anos, o dr. Tokai sai com mulheres casadas, às vezes mais de uma simultaneamente, e é hábil em desvencilhar-se se elas ameaçam apaixonar-se. Mas logo nos perguntaremos se é a condição do terceiro prejudicado que move o dr. Tokai. Um dia, inesperadamente, ele se apaixona. Perde a vontade de sair com as outras, de comer, de trabalhar, de se vestir com apuro. Ele descobre seu ódio e sua vontade de destruir tudo. Essa mulher deixa o marido e o filho para ir embora com outro, mas não por ele. Ele dizia que as mulheres têm “um órgão independente” para mentir e ele usou esse órgão para se apaixonar, levá-lo às alturas e ao abismo. O gozo feminino, opaco, para além da medida fálica que ele sabia usar tão bem, é encarnado em uma mulher e, logo, nele mesmo, e o leva ao pior.
Se os 30 anos da vida do dr. Tokai, pautados pela regularidade das parcerias escolhidas pela condição de estarem comprometidas com outro homem, nos fazem pensar em uma neurose regulada pelo falo que coloca em cena a monotonia do fantasma, o encontro devastador fez apelo a um outro gozo escondido sob a regularidade fálica. Se Lacan diz que a libido é um órgão, temos aqui um órgão independente, fora da medida fálica, que este sujeito experimentou uma única vez em sua juventude, ao apaixonar-se ao ponto de sentir dores no peito. Antes, porém, do encontro com a mulher devastadora, o dr. Tokai confidencia ao autor o seu encontro com o livro de um médico que viveu a experiência devastadora de um campo de concentração nazista. A perda amorosa leva-o, então, à realização do fantasma de reduzir-se a nada, apagar-se no ódio a si mesmo, fazendo da mulher o fator desencadeante do seu fantasma de aniquilamento. Não há aí uma diferença em relação à devastação feminina como outra face do amor?
[1] MURAKAMI Haruki. Um órgão independente. In: Homens sem mulheres. Traduzido e publicado em inglês em 2017. Site: Homens Sem Mulheres (coleção de contos de Haruki Murakami) – Wikipédia, a enciclopédia livre