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Psicanálise e ciência têm algo em comum?
Comentário de Tânia Regina Anchite Martins (EBP/AMP) sobre o eixo Psicanálise e Neurociência.
“O inconsciente e o cérebro não têm nada em comum” ¹, qual a importância desta frase, que não é óbvia e pode nos provocar? Lacan, em seu texto,” O mal-entendido”, publicado em 1980/1981 diz: “Se vocês acreditam que tudo pode se revelar, pois bem, metam isso na cabeça: tudo não pode. Isso significa que uma parte não se revelará jamais.” ²
Lacan está retomando o dito, no princípio era o verbo. Ele ressalta que não diria que o verbo é criador, mas sim que o verbo é inconsciente, ou seja, mal-entendido. O corpo, ele diz, “só aparece no real como mal-entendido” ³. Ele advém de uma linhagem de falasseres que habitava o mal-entendido. É o que se herda, o mal-entendido dos gozos.
“O mal-entendido já estava lá antes. Pelo fato de que desse belo legado, desde antes, vocês fazem parte, ou melhor, vocês participam das algaravias dos seus antecedentes” ⁴. O falasser padece do trauma de nascer desejado ou não, tanto faz! Nasce de dois falantes que não falam a mesma língua, que não se entendem, mancomunam-se para a reprodução por um mal-entendido, o qual seu corpo transmitirá.
E na psicanálise trabalhamos com o mal-entendido que nos chega como mal-estar.
Segundo Miller, no Seminário “Todo mundo é Louco”, aula X, “Determinação e Contingência”, a pesquisa cognitivista buscou o lugar cerebral do recalque, e para isso também se serviu de Freud. Lacan chamou de sujeito uma função que nada tem a ver com a consciência de si, já que os valores de liberdade e autonomia estão totalmente ausentes da definição lacaniana de sujeito. Para Lacan tratava-se do funcionamento de uma sintaxe significante.
“A estrutura da linguagem confere seu estatuto ao inconsciente, mas, não produz um real que seja próprio do inconsciente já que a linguística, a antropologia e as humanidades também tomam aí sua referência e exploram este real da linguagem. O único real do inconsciente se encontra esboçado na ausência, no que faz furo, no resíduo de toda explicação” (MILLER, 2013) ⁵.
O início do último ensino de Lacan é marcado pelo abandono da categoria de determinação orientando a prática analítica, em benefício da contingência. A contingência, o acaso, o que pode ou não, se inscrever, o sem lei.
Quando Lacan abandonou o termo sujeito ou o subordinou ao de ser falante, o que aconteceu concomitantemente à redução da sintaxe e do simbólico, no lugar da sintaxe surgiu a semântica Lacaniana da fuga do sentido. O conceito de fuga do sentido se conecta com o de furo. Furo não é falta de tal ou qual conteúdo ou significante.
Na esteira da desvalorização da sintaxe e do simbólico veio a desvalorização da ciência, a qual Lacan disse que é fútil, tampona os furos, fato que a torna sem sentido.
A materialidade que Lacan encontrou então foi, antes de tudo, a do sintoma. Não o sintoma formação do inconsciente, estruturado como uma linguagem, mas o sinthoma acontecimento de corpo.
Bassols (2015) em seu texto “Não há ciência do real” ⁶, distingue o real da psicanálise do real da ciência. Ele diz que: “O real da psicanálise é um real próprio do campo da sexualidade e da linguagem, um real que surge
como uma profunda perturbação do gozo e do sentido no ser falante”. Esse real se diferencia radicalmente do real que a ciência crê manejar e representar com seus aparelhos, o qual parece conter em si mesmo um saber escrito de antemão, seja neurônio ou o que se isolou como código genético.