Giovanna Quaglia – EBP/AMP
Coordenadora Geral das IV Jornadas da EBP-LO
O aforismo: “Todo mundo é louco”[i], de Lacan, já vem ecoando na comunidade da Seção Leste Oeste, seja pelas ressonâncias da fala de Jacques-Alain Miller ao lançar o título do próximo Congresso da AMP[ii] ou a partir das atividades do Conselho no Seminário de Orientação Lacaniana, bem como nas atividades da Diretoria. Partindo de “todo mundo é louco”, lançamos como tema para nossas próximas jornadas “Que loucura é essa?”, propondo uma fronteira entre o universal, o singular e como os dois se articulam. É nessa fricção entre o globalizado nos ideais da civilização e o que incide de singular na indagação “Que loucura é essa?” que somos convocados a pensar a psicanálise engajada na subjetividade de nossa época e, dado esse horizonte, refletir sobre os modos atuais de articulação da loucura de cada um.
Escutado em sua singularidade, nenhum humano seria normal se considerarmos a ruptura que é o encontro contingente com a linguagem. Desse modo, o delírio é universal porque somos falantes. Uma análise nos mostra que também somos loucos, e que cada um tem sua língua própria, apesar da língua comum a todos. Fazemos de conta que estamos falando as mesmas coisas, seguindo a norma linguageira, no entanto é nos sonhos, nos chistes, nos atos falhos, no sintoma, que algo escapa e nos adverte a respeito da verdade mentirosa da igualdade universal.
Quando perguntamos “Que loucura é essa?” lançamos algo na temporalidade[iii], cruzamos o instante de ver, para sermos içados ao tempo para compreender. Assim, podemos pensar que o demonstrativo “essa” no tema de nossas Jornadas indaga aquilo que está implicado na transferência, uma vez que a pergunta terá sua solução dirigida ao Outro, lançando a possibilidade de olharmos para o que acontece em uma análise, na peculiaridade de soluções que parecem loucura. Como indicou Lacan, em uma análise pode-se descobrir “justamente até que ponto o sujeito dito, considerado normal não o é”[iv]. Na prática clínica, portanto, não é possível fazer entrar a noção de normalização. Nós, enquanto analisantes, vivemos essa experiência!
Se uma análise trata da singularidade, sendo a experiência de um saber suposto, sem ordem ou coerência, como ensinar alguém sobre isso? O discurso analítico não é matéria de ensino, indicou Lacan. E é aí que tocamos em outra sutileza de nosso tema: Ensinar é uma loucura? Como pensar então na formação do analista? Freud[v] nos indicou os ofícios impossíveis – governar, ensinar e analisar! Para refletir sobre isso, é essencial perceber a ambiguidade da palavra impossível, naquilo que toca a contingência. Então, como pensar essa loucura de ser analista, sem ter como miragem o momento de torção na passagem de analisante a analista?
Em outra diretriz, despontar algo do impossível não é o que faz a arte? O artista não é aquele atravessado por alguma coisa, além da construção do enredo delirante da fala, que cria outra dimensão para a experiência de nossas loucuras? Teatro, literatura, cinema, escultura, pintura, música, dança, arquitetura… O objeto da arte não nos faz loucos, nem nos salva da loucura, mas como espectadores, seu efeito nos deixa um pouco mais fora da realidade, do senso comum, desfigura a norma, contornando com a estética o vazio radical e singular deixado pela impossibilidade de dar sentido. “Que é a vida? Uma ilusão, uma sombra, uma ficção… toda a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são.” Escreveu La Barca [vi], na peça A vida é sonho.
Alucinação, delírio, devaneio, doidice, insensatez, maluquice, desatino, desvario, elucubrações, fantasias que habitam a intimidade… Múltiplos modos para a eclosão das crises e suas respostas sintomáticas, nomeações para o que escapa ao senso comum do que é a realidade, e a experiência da psicanálise nos indica que “cada um só acredita profundamente no seu sintoma. […] é por isso que o sintoma não se reduz à psicopatologia.” [vii]
Por outro lado, na contemporaneidade, notamos a tendência do “sou quem digo ser”, cada um no seu estilo de vida. Entre a universalização dos significantes e a particularização dos modos de gozo, surgem movimentos de “despatologização generalizada”, que, a partir de grupos de iguais, reivindicam seus direitos, em uma redução do sujeito a si mesmo, formas de identidade que rejeitam o Outro (heteros). O que pode se traduzir, como indicado por Miller, pela “desaparição programada da clínica” [viii], mas isso não parece uma loucura?Todo mundo é normal?
Em outra vertente da exclusão do Outro, a tentação dos extremismos totalitários visa submeter uma única forma do mesmo. Exagero e radicalismo, fenômenos contemporâneos como é o caso da violência, intolerância, segregação, racismo, fanatismo, que levam a cenas de barbárie. Cenas loucas que assistimos pelo mundo globalizado. Que normalidade é essa que não suporta a diferença? Tempos do “mundo imundo” [ix], que se revela como forma destrutiva da civilização, face da pulsão de morte. Que loucura é essa!
Eis os desafios com os quais nos deparamos no momento atual: fazer-nos presentes como psicanalistas, não apenas na clínica, mas também na cidade, no campo político.
Finalmente, uma palavra sobre a escolha do local de nossas IV Jornadas em Brasília [x]. Para os que não conhecem a cidade, o Plano Piloto é o cruzamento de duas retas: o Eixo Monumental do Oeste-Leste e o Eixo Rodoviário Sul-Norte. Dois Eixos se cruzam na Rodoviária do Plano Piloto, que tem, logo adiante, o Museu Nacional da República, escultura a céu aberto, miragem de Oscar Niemeyer, em formato de semiesfera, objeto agalmático, para ocuparmos com nossas Jornadas!
Abrem-se, por esses recortes, algumas interrogações que nos servirão de guia para explorar o tema destas Jornadas! Clínica, ensino, arte e política: peças soltas para pensar “Que loucura é essa?”
Convidamos todos ao trabalho!