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Devastação Materna1

Por Sylara Hartung Araújo
 A Onda ou As Banhistas, Camille Claudel (1897/1903) Museu Rodin, Paris
A Onda ou As Banhistas, Camille Claudel (1897/1903) Museu Rodin, Paris

Freud, no seu artigo Sexualidade Feminina, dirá: “Durante a fase do complexo de Édipo normal, encontramos a criança ternamente ligada ao genitor do sexo oposto, ao passo que seu relacionamento com o do seu próprio sexo é predominantemente hostil”. (FREUD, 1931). Segundo Freud, tanto na menina quanto no menino, a mãe é o primeiro objeto de amor. Ele se pergunta, então, como, quando e por que a menina se desliga da mãe?

Um dos principais motivos do afastamento da menina em relação à mãe é a decepção por parte da menina ao perceber que a mãe não tem pênis e que essa a fez incompleta. “Seja como for, ao final dessa primeira fase de ligação à mãe, como motivo mais forte para a menina se afastar dela, a censura por a mãe não ter lhe dado um pênis apropriado, isto é, por tê-la trazido ao mundo como mulher” (FREUD, 1931). É pela inveja do pênis, penisneid, que a menina se desligará da mãe e irá em direção ao pai.

Por outro lado, Freud afirma que não será fácil para a menina separar-se da mãe: “Na verdade, tínhamos de levar em conta a possibilidade de um certo número de mulheres permanecerem detidas em sua ligação original à mãe e nunca alcançarem uma verdadeira mudança em direção aos homens. Assim sendo, a fase pré-edipiana nas mulheres obteve uma importância que até agora não havíamos atribuído”. (FREUD, 1931).

Freud utiliza-se do termo catástrofe nos casos em que a menina não consegue se separar da mãe. “A transição para o objeto paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida em que escaparam à catástrofe”. (FREUD, 1931).

Miller, em seu artigo: A Criança entre a Mulher e a Mãe, vai dizer que a criança não deve preencher a mãe, mas, sim, dividi-la entre mãe e mulher. “Ou a criança preenche ou a criança divide. Quanto mais a criança preenche a mãe, mais ela a angustia, de acordo com a fórmula segundo a qual é a falta da falta que angustia. A mãe angustiada é inicialmente, aquela que não deseja, ou deseja pouco, ou mal, enquanto mulher.” (MILLER, 1996, p.8).

No Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise, Lacan refere-se ao desejo da mãe, dizendo: “O papel da mãe é o desejo da mãe. É capital. O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhe seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um crocodilo em cuja boca vocês estão — a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar sua bocarra. O desejo da mãe é isso”. (LACAN, 1969-1970, p 105).

Lacan retoma o termo freudiano catástrofe para definir o seu conceito de devastação. Para ele, a devastação é inerente ao desejo da mãe. Esse desejo materno pode vir a causar danos.

Pretende-se trabalhar a devastação da mulher na sua relação com a mãe. O conceito de devastação materna aparece no ensino de Lacan, a partir do seu texto O Aturdito, no momento em que ele está elaborando suas fórmulas da sexuação. Mais tarde, em seu Seminário 20, Mais, ainda, ele apresenta as fórmulas da sexuação. Do lado masculino dessa fórmula, os sujeitos são orientados pelo gozo fálico, e do lado feminino, há o gozo fálico e um gozo suplementar não regido pela significação fálica. Lacan define o feminino como não todo. Podemos pensar que esse gozo a mais, presente no sujeito feminino, enquanto mãe, é que poderá vir a causar devastação em algumas mulheres na sua relação com a mãe.

Em O Aturdito, Lacan utiliza-se do termo ravage (devastação) para designar a relação de uma mulher com sua mãe, dizendo o seguinte: “Por essa razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher um peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai – o que não combina com ele ser – segundo, nesta devastação”. (LACAN, 1972, p. 465).

Encontramos o tema da devastação materna no romance: Barragem Contra o Pacifico, de Marguerite Duras. Na escrita de Duras, observa-se a ênfase no tema da devastação materna. O enredo é centrado na personagem mãe, que ainda jovem deixou a França para trabalhar na Indochina Francesa. “A mãe é uma antiga professora do norte da França, que outrora fora casada com um professor. A um só tempo, impacientes e seduzidos por cartazes de propaganda e pela leitura de Pierre Loti, ambos tentaram a aventura colonial. Depois de alguns anos relativamente felizes, o pai morre e a mãe fica sozinha com os filhos Joseph e Suzane” (DURAS, 1950).

Ao ficar sozinha com seus filhos essa mãe não se casa novamente, exercendo, a partir daí, somente a função de mãe. Barragem contra o Pacifico trata-se de um romance cuja mãe é um sujeito que aposta todas as suas economias em um terreno infértil à beira do oceano pacífico. E ela, ao descobrir que o oceano invadia as suas plantações de arroz, irá construir inúmeras barragens contra essas invasões, sendo que nunca obteve êxito em seu propósito. Ela envolve vários camponeses no seu projeto de construção de uma barragem contra o oceano pacífico. Era uma mãe que se relacionava com o mar, tentando conter sua fúria, suas invasões, tornando-se, também, furiosa e devastadora como o mar e nada podia contê-la.

Em uma das passagens do texto o irmão Joseph diz: “Tenho certeza de que todas as noites ela recomeça suas barragens contra o Pacífico. A única diferença é que elas têm cem metros de altura ou dois metros de altura, depende se ela está bem ou não. Mas, pequenas ou grandes, ela as recomeça todas as noites. Era uma ideia bonita demais”. (DURAS, 1950).

Esse livro retrata a mãe como uma mulher obstinada, e expõe o amor louco de uma mãe por seus filhos. Mostra, também, a relação de amor permeada pelo ódio entre mãe e filha. Numa outra passagem do texto, Marguerite descreve a mãe assim: “A mãe a fazia pensar em um monstro devastador. Tinha acabado com a paz de centenas de camponeses na planície. Tinha até desejado acabar com o Pacífico. Tivera tantos infortúnios, que se tornara um monstro com um encanto poderoso, e seus filhos corriam o risco, para consolá-la de seus infortúnios, de nunca a deixar, de se dobrar às suas vontades, de se deixar devorar por ela” (DURAS, 1950).

O romance mostra uma mãe que foi enlouquecendo, a partir de seus fracassos, e uma filha muito submissa a essa mãe. A filha Suzanne manifestou-se, em diversos momentos do livro, o seu desejo de separar-se da mãe, mas algo a impedia. Ficara cuidando da mãe, e com muito sofrimento, até a morte desta. Só após a sua morte ela conseguirá ir embora com seu irmão para outra cidade, deixando para trás seu novo amante. Mesmo ocupando o lugar de causa de desejo para um homem, não conseguiu sustentar esse lugar por muito tempo.

Conclui-se que, a devastação em algumas mulheres, refere-se à maneira como a criança se posicionou em relação ao desejo da mãe. Pode-se pensar, que na maioria dos casos de devastação, entre a mulher e sua mãe, esta mãe não se encontra dividida entre mãe e mulher como nos define Miller.

Esse gozo suplementar, presente no sujeito feminino, enquanto mãe, é que poderá causar devastação em algumas mulheres.


Referências Bibliográficas:
DURAS, M. Barragem contra o Pacífico. Tradução da E. A. Ribeiro. São Paulo: Arx, 2003 (Trabalho original publicado em 1950).
FREUD, S. Sexualidade feminina. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, v. XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Texto original publicado em 1931).
LACAN, J. O Aturdito. In: Outros escritos, p. 369-370. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (Trabalho original publicado em 1972).
LACAN, J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, Tradução de Ari Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991 (Trabalho original publicado em 1969 — 1970).
LACAN, J. O Seminário livro 20: Mais, ainda. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008 (Trabalho original publicado em 1972 — 1973).
MILLER, J. A Criança entre a Mulher e a Mãe, Tradução de Cristiana P. de Mattos, Cristina Vidigal, Inês Seabra e Suzana Barroso (Publicado em 1996).

[1] Texto apresentado na Noite de Cartéis da Delegação ES.
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