#08
Editorial Boletim amurados #08
Aconteceu em tempos de cólera e outras epidemias
Por Rosangela Ribeiro – Comissão amurados
“Se entregou sem medo, sem dor, com a alegria de uma aventura de alto mar, e sem vestígios da cerimônia sangrenta além da rosa da honra no lençol. Ambos o fizeram bem, quase como um milagre, e continuaram a fazê-lo bem de noite e de dia e cada vez melhor no resto da viagem, e quando chegaram a La Rochelle, se entendiam como amantes antigos.”
O amor nos tempos do cólera, Gabriel Garcia Márquez, p. 198-9.

Coléricos! Passionais!
Assim, nós latinos somos nomeados por aqueles que estão de fora, que são estrangeiros ao nosso modo de vivenciar os afetos. A tragédia em Romeu e Julieta não trata do amor: Romeu inicia essa obra shakespeariana apaixonado por Rosalina. Ele vai à uma festa na casa dos Capuleto, na qual encontra Julieta, por quem se apaixona desesperadamente. Logo, há a célebre e célere cena da varanda. Juram o amor eterno. Isso ocorre de domingo para segunda. Casam-se na terça-feira. Amam-se uma única vez e morrem na quinta-feira. Se fosse algo sobre o amor, seria extremamente fria. Em contrapartida, no canônico romance O amor nos tempos do cólera, do colombiano Gabriel Garcia Márquez, Florentino Ariza sofre a ausência da amada, Fermina Daza, por cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias. Para ela, ele escreveu cartas de amor por todo esse tempo. No primeiro encontro com Fermina, Ariza quer oferecer-lhe mais de setenta páginas nas quais descreve seu amor. Decide ler apenas uma, na qual continha o essencial. Arrebatado em gozo, Ariza retorna para casa e, pela sua feição e por seus sintomas, sua mãe sabia o que acontecera, sabia de seu encontro com a amada. No entanto, a mãe desespera-se, pois“ele perdeu a fala e o apetite e passava as noites em claro rolando na cama. Mas quando começou a esperar a resposta à sua primeira carta, sua ansiedade se complicou com caganeiras e vômitos verdes, perdeu o sentido da orientação e passou a sofrer desmaios repentinos, e a mãe se aterrorizou porque seu estado não se parecia com as desordens do amor e sim com os estragos do cólera” (MÁRQUEZ, p. 82).
Eis aí um amor colérico, passional! Por que não dizer latino? Latinidade que transborda também na adaptação cinematográfica do romance, dirigida por Mike Newell, com Fernanda Montenegro, que interpretou Tránsito Ariza, mãe de Florentino. Para confirmar a virulência latina, o diretor inglês sugeriu que a trilha sonora da película fosse feita pelo brasileiro Antonio Pinto e por Shakira, cuja voz contralto/mezzo-soprano confere uma dramaticidade gutural à trilha, sobretudo ao bolero “Hay Amores”. Observa-se que, tanto no romance quanto no filme, as muralhas de Cartagena não conseguiram conter o amor colérico de Ariza por Fermina. Ele é amuro que, conforme Jacques Lacan nos ensina, “aparece em signos bizarros no corpo. São esses caracteres sexuais que vêm do além, desse local que temos acreditado podermos ocular no microscópio sob a forma de gérmen – a respeito do qual farei vocês notarem que não se pode dizer que seja a vida, pois aquilo também porta a morte, a morte do corpo, por repeti-lo. É de lá que vem o mais, o em-corpo [en corps], o A inda [encore]” (1985.p. 13).
Os gestos e atos coléricos, enfim, afetos, no entanto, não se condensam apenas em formas belas do amor. Afetos são dionisíacos; não apolínios! Nesse sentido, esse último editorial traz contribuições para refletirmos tanto sobre o amor como cólera quanto sobre outras formas coléricas de afeto.
Frederico Feu de Carvalho nos apresenta seu texto Erotomania: um modo de amor feminino, em que a erotomaniaé “uma reinvindicação nascida da exigência pulsional do Um, em relação ao parceiro, ao existir-a-dois. O Real, próprio à erotomania, é o amor como impossível”.Carvalho trabalha a erotomania a partir do filme “Um Instante de Amor”, de Nicole Garcia(2016), mostrando o amor feminino, na histeria e na psicose.
Adriana Pessoa, Simone Vieira e Waléria Paixão adentram no romance de Márquez O amor nos tempos do cólera mostrando que o amor de Florentino Ariza fez o amor acontecer, dar certo. Porém, a psicanálise aponta que a relação sexual não existe, em nenhum aspecto, não apenas como uma complementaridade entre os sexos. Não há, para esse saber, nenhuma modalidade de relação. A fantasia neurótica quer fazer com que, imaginariamente, a relação sexual exista no encontro amoroso, por exemplo, mas se trata de uma ilusão.
Na rubrica Aconteceu em tempos de peste, Regina Cheli Prati apresenta seu texto A gripe espanhola e a pandemia de COVID-19, onde traz semelhanças entre as duas pandemias. A autora mostra-nos que Freud fora golpeado pela primeira delas, pois, devido a ela, perde sua filha de vinte e seis anos que deixa dois filhos. Não bastassem o clima de uma guerra inacabada, as acirradas práticas antissemitas, a dor é ainda ratificada pela perda da filha. A história se repete? Que lugar dar à morte em nossas reflexões? Há um fim para o ato de velar? O que Freud pode nos ensinar sobre isso?
Finalmente, a partir do conto Sarapalha (Sagarana), de João Guimarães Rosa, do texto teatral O Rinoceronte, do dramaturgo franco-romeno Eugène Ionesco, de Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, e, ao fim, com reflexões de Jacques-Alain Miller em El psicoanálisis también es una epidemia, Simone Vieira e Regina Prati convidam-nos a pensar sobre encontros e desencontros inerentes às relações humanas.
O barco navega e estamos nele. Não há aqui, como dissemos, apenas a possibilidade das formas belas e inspiradoras dos afetos passionais. Afetos, insistimos, são dionisíacos! Nesse barco, a bandeira amarela está hasteada, não para garantir a plenitude do amor de Ariza e Fermina. Não se trata de uma bandeira colocada propositalmente para fazer um semblante. A bandeira nesse barco em que estamos é contingencial! Estamos em tempos coléricos: há amores; há ódio; há mortes! E o barco segue…
A todos nós, boa jornada!!!