Aconteceu em tempos de cólera e outras epidemias Por Rosangela Ribeiro – Comissão amurados “Se…
A transferência é amor
Denizye Aleksandra Zacharias (EBP/AMP)
“A singularidade da análise é evidentemente o laço que une uma proposição a outra, que, na matemática de Pappus, é da ordem do possível, e que, no campo analítico, toca alguma coisa que é da ordem do impossível.” (REGNAULT, 2001, p.53).
“A transferência é amor” quer dizer que, na experiência analítica, falamos de amor, e isso se deve à posição do analista e do analisante. Este, diante do que não há, aliena-se no sujeito suposto saber e articula-se a um discurso amoroso no dispositivo, o qual, na cadência dessa vereda, vai deixando marcas, restos e gozo. Portanto, por se tratar de uma estrutura lógica, é preciso deslindá-la, para detalhar suas implicações.
A metáfora do amor
No Seminário VIII, vamos encontrar um trabalho exaustivo de Lacan (1992) no que se refere à transferência como amor, e dedicará um ano de estudos para formalizar uma conceitualização como também localizar o que há de real no amor de transferência.
Desse modo, ele apresenta as duas dimensões da metáfora do amor. A primeira refere-se à posição do sujeito quando inicia uma análise e logo se vê levado a construir outra posição. E a segunda dimensão da metáfora do amor é a mudança que ocorre com relação ao amor, ou seja, o sujeito busca no analista, no amor de transferência, uma coisa e acaba encontrando outra. Cito Lacan:
O amor como significante – pois, para nós, ele é um e não mais que isso – o amor é uma metáfora – na medida em que aprendemos a metáfora como substituição […] É na medida em que a função do ératés, do amante, na medida em que é ele o sujeito da falta, vem no lugar, substitui a função do erôménos, o objeto amado, que se produz a significação do amor (LACAN, 1992, p. 47).
Então, aqui, a transferência é apontada para o amor ligado à falta e ao desejo que se articula com o desejo do Outro, a transferência simbólica. Contudo, ao avançar na leitura do Seminário e no discurso sobre o amor, ele localiza na transferência sua dimensão do amor real a partir da questão: O que se perdeu no amor?
Aqui, nesse ponto, será introduzida a dimensão do ser no outro, e o interesse de Lacan avança para a topologia do objeto a, que entra no jogo na dimensão da transferência como elemento real no outro.
Laurent elucida, dizendo que
a decifração do sentido não é a única coisa que está em jogo. Há a visada daquele que diz. Trata-se de recuperar alguma coisa de perdido diante desse interlocutor. Essa recuperação de objeto se dá a chave do mito freudiano da pulsão. Ela funda a transferência que amarra os dois parceiros (LAURENT, 2007, p.212).
Por isso, no início de uma análise, o sujeito está no lugar do amado, porque é o analista que tem que buscar esse ser que está escondido e do qual o sujeito nada sabe.
A primeira forma de buscá-lo é a de colocar o sujeito nessa dimensão que Lacan chamou de formalização do sintoma, quer dizer, a busca de algo que está escondido no sujeito e a respeito do que ele nada sabe. É nesse não saber que o sujeito construiu sua verdade, a qual o levou a ter todos os problemas com os quais se orientou na vida. Desse modo, o analista se dirige a esse objeto, e se o perde, se isso se perde de vista, se produzirá o fracasso amoroso na análise.
Miller (2002) afirma que a vida amorosa do sujeito é um labirinto, pois o objeto encontra-se situado no desejo, na demanda e na pulsão, de modo que ele aparece, às vezes, reunido, às vezes, separado, ora permanente, ora transitório, ou puro, ou misturado.
Assim, o sujeito suposto saber vela e dificulta o acesso à função de objeto que ali se encontra, pois é com o objeto a que o sujeito alimenta seus fantasmas, seus sintomas, suas sublimações, suas inibições, e é ele que aparece na angústia, porém o mais radical é que esse objeto a permite ao sujeito esquecer que o Outro não existe, porque é com esse objeto que o sujeito alimenta o outro, ama o outro, sofre pelo Outro, se ama com o Outro, enfim, o faz existir (BRODSKY, 2011).
O amor no final da análise
O que ocorre com a liquidação da transferência no final de uma análise? O que acontece com o amor de transferência?
Recorto aqui dois testemunhos de passe para exemplificar como uma análise, ao ser levada até o fim, ao desabonar o inconsciente, uma experiência de vazio acontece no momento em que se solta do Outro, e, então, cada um, em sua enunciação, nomeia o novo.
Raquel Cors (2021), em sua transmissão sobre o amor, no final da análise, fala da solidão da enunciação, uma vez que liquida a transferência, ou seja, quando ela se soltou do que foi para o Outro, surgiu um gozo, um gozo para a vida, que ela nomeou de o novo no amor.
Silvia Salman, em “O avesso do amor”, relata o significante novo “encarnada”, que concentra, no corpo, o vivo e o feminino, e enuncia:
Se o sinthoma é o que vem a se escrever no lugar da relação sexual impossível de ser escrita, o que no fundo se ama em alguém é seu sinthoma, ou seja, os sinais que este envia e que refletem a maneira como cada um trata a ausência da relação sexual. E isso – por sorte, às vezes, acontece – pode desencadear o amor (SALMAN, 2011, p.35).
Nos relatos das duas analistas-analisantes, podemos dizer que o novo no amor pode estar no sinthoma, na vida, pois, ao final de uma análise, há pura poesia, ao falar de amor real.