Por Frederico Feu de Carvalho (EBP/AMP) A erotomania é uma exigência pulsional derivada do postulado…
Atualidade do ódio, uma perspectiva psicanalítica1
Anaëlle Lebovits-Quenehen ( ECF/AMP )
Atualidade do ódio. Uma perspectiva psicanalítica parte de uma constatação: o ódio volta a assombrar o mundo com força. Não que esse afeto seja novo, ele é tão velho quanto o mundo. Mas, dependendo do tempo e do lugar, o ódio muda de cara, toma novos rumos e se exprime mais ou menos fortemente. No contexto do mal-estar na civilização, nós o vemos hoje no comando de certas administrações, mas também presente nas ruas, nas mídias ou nas redes sociais. No entanto, que o ódio ganhe terreno não é sem consequências, e especialmente quando consegue ascender aos mais altos escalões de um Estado. Este ensaio se engaja resolutamente contra a besta imunda, questionando as condições sob as quais este ódio emerge, ressalta suas fontes e explora o que está em jogo, antes de entregar, por fim, um antídoto.
Alguém pode se perguntar, talvez, por que um psicanalista se envolve nesses assuntos. Temos três motivos, pelo menos. Em primeiro lugar, o exercício da psicanálise requer um Estado de direito, onde a fala se enuncie livremente. Mas o ódio ambiente nos tempos de hoje o coloca potencialmente em perigo. Em segundo lugar, o discurso analítico, especialmente o de Freud e o de Lacan, lança uma nova luz sobre o ódio e é muito mais eficiente que os tantos discursos que pretendem dissolvê-lo denunciando-o, mas que, na realidade, apenas o reforçam.
Por fim, aqueles que se levantam hoje contra o discurso do ódio, especialmente da extrema direita, não são tão numerosos a ponto de os psicanalistas poderem se abster de se oporem a esses discursos sem inconsequência.
Lacan viu chegar o retorno do ódio em uma época em que se acreditava haver dele se livrado para sempre e mais um pouco. O fim da história havia chegado. Hoje em dia, parece a todos – ou quase – que essa profecia de Lacan está correta: a paz universal não é para hoje, nem para amanhã, ao que parece, e agora isso é especialmente perceptível. Impõe-se, doravante, um certo número de questões: por que o ódio se expande, se intensifica, ganha cada dia mais espaço? Como explicar seu couro tão duro? Qual é, verdadeiramente, seu objeto? A que ele satisfaz naquele que o experimenta e o mantém? E naquele a quem ele visa? A psicanálise de orientação lacaniana permite elaborar respostas tão surpreendentes quanto precisas a essas questões.
Atualidade do ódio. Uma perspectiva psicanalítica toma diversos caminhos para responder a isso, começando pela análise dos efeitos dos discursos da ciência e do capitalismo sobre nossa época. Isso pode parecer técnico, mas não é, e somente uma passagem por esses discursos e seus efeitos que nos permitirão apreender sua tendência a reconduzir todas as coisas do mundo ao idêntico, inclusive os corpos falantes, o que tem como efeito paradoxal difratar o ódio. Abordando esses discursos, descrevemos sua lógica para darmos conta das faces do ódio mais recentes, pois seus efeitos têm data, certamente, mas, apesar disso, eles continuam correndo – e rápido. Precisemos que mostrar de que forma o ódio se renova ou se amplia nos dias de hoje não equivale a acusar a época em si, que, por outro lado, tem seus méritos. É somente a tentativa de apreender o que constitui a especificidade do eterno retorno do ódio, tal como ele se manifesta sob as formas mais atuais, aqui e agora. Esta é também a ocasião de abordar algumas questões cruciais: podemos acreditar no progresso? E, se não há progresso, é mais conveniente olhar o passado como nosso único futuro possível? Alguma outra via poderia ser ainda proposta?
A segunda parte deste livro nos leva a mudar de escala para nos interrogarmos sobre um fator recente de ódio, que se conjuga com o anterior, aquele pelo qual a memória coletiva parece séria e maldosamente vacilar. Na verdade, essa abrasão da memória concede ao ódio difratado que evocamos uma intensidade que não era sentida há várias décadas. Um recurso à distinção entre o recalque e a foraclusão nos permite apreender o poder do esquecimento que está em jogo e, mais ainda, seus efeitos em forma de retorno no real do que está esquecido, melhor dizendo, do que não está inscrito. Pois esses efeitos se fazem sentir inclusive na língua, não sem maiores efeitos políticos.
Dessas reflexões sobre o momento, passamos, em seguida, às considerações que tocam o íntimo, a fim de cernir o que está em jogo para quem odeia, quando ele visa ao outro com sua raiva. É a ocasião de examinar a particularidade de dois objetos privilegiados do ódio (entre outros): os judeus e as mulheres. Esses dois alvos, que o ódio põe de bom grado em sua mira, nos ensinam muito sobre eles, em especial, sobre o que o ódio procura precisamente alcançar em cada um deles.
Por fim, um retrato de Lacan e de sua singularidade levada à incandescência nos oferece o único antídoto para o ódio que conhecemos. Dedicamos, pois, a última parte deste livro a ele.
Ao longo do caminho, um fio se estende entre o Outro (odioso ou objeto de ódio) e a íntima Alteridade que habita os corpos falantes. O ódio é apreendido na época como localizado na junção mais íntima do sentimento de vida, aos pedaços, tais como as múltiplas facetas de um cristal onde a luz se difrata.
Por que este livro agora? Bem, porque apesar de sabermos que o ódio se anuncia sempre mais feroz, não podemos, entretanto, considerá-lo sem nos sentirmos a um só tempo cada vez mais abalados e fortalecidos. Por menos que o ódio nos atinja, de fato, somos cada vez mais convocados a responder a ele, cada um à sua medida e na mais absoluta solidão, mas não sem alguns outros – não menos solitários, sem dúvida, uma vez que eles também se sentem abalados por essas manifestações.
Nisso também, seguimos Freud e Lacan que, certamente, não eram otimistas, mas não ficaram , nenhum dos dois, congelados em uma posição de retirada: seja aquela da bela alma que deplora as desordens do mundo para melhor lavar suas mãos, ou aquela do avestruz cuja política consiste em enfiar a cabeça na terra, enquanto lhe depenam o traseiro. Ambos sustentavam firmemente o seguinte: queiramos ou não, somos responsáveis pelas consequências de nossos atos – inclusive quando estes faltam. Assim, habitar o mundo, mesmo quando a humanidade não caminha rumo ao progresso (mesmo que nada leve a antecipar que ela corre cada vez mais, com certeza, para sua perda), é ir até ele, sem esperança, por certo, mas ir até ele mesmo assim. É, portanto, levar em conta um impossível sem afundar na inibição. Da mesma forma que a proposição lacaniana, segundo a qual a relação sexual não existe não é um convite à solidão social, mas um apelo à invenção necessária para tornar o amor algo “mais digno” , assim também o ódio que rosna e que nos parece impossível frear requer nossa inventividade. Jacques-Alain Miller nos mostrou – mais de uma vez – que o impossível não é, e jamais será, uma desculpa. Ele poderia até ser, por fim, uma ocasião a se aproveitar, um convite ao ato. De fato, quando uma escolha forçada se apresenta (quer dizer, uma escolha que implica uma grande perda), teríamos nós de fato outras opções que não o ato, no qual nos experimentamos sempre, de algum jeito, louco (não louco de todo)?
Temos outras opções além desse ato, do qual somos advertidos de que seu único sucesso é falhar?
Portanto, se este ensaio não apresenta nem programa, nem caminho a seguir, ele convida, de bom grado, ao ato como remédio contra a eternidade que nos espreita muito frequentemente. Ele nos convida, assim, à alegria.