Aconteceu em tempos de cólera e outras epidemias Por Rosangela Ribeiro – Comissão amurados “Se…
Um amor fora dos limites da lei
(Prêambulo por Ruskaya Maia)
Um achado. É assim que consideramos o texto de Elisa Alvarenga ‘Um amor fora dos limites da lei’, originalmente proferido como depoimento na plenária dedicada ao passe No XIV Encontro Brasileiro de Psicanálise ‘Fazer análise – Quando, porquê e como’, anunciada sob o tema “O novo amor”. Versando sobre as vicissitudes de sua experiência de análise, Elisa aborda diretamente o que buscamos investigar em nossas discussões sobre o que acontece com o amor durante uma experiência analítica e o que ele se torna ao final. Nesse sentido, estamos em cheio no segundo eixo proposto por nossa comissão científica:
“Indagar a respeito das mudanças no modo de amar do sujeito contemporâneo, tanto no interior do tratamento – nas relações do analisando com o analista, na transferência positiva ou negativa, assim como na contratransferência – quanto nas relações amorosas na vida do sujeito. Constatando que “[…] o tratamento do neurótico vai no sentido de um consentir com o amor, não sem que esse delicado percurso seja árduo, doloroso, recheado de ódio e cólera. De todo modo, é inevitável percorrê-lo para que se abra a possibilidade de que um amor mais digno se dê”.
Elisa Alvarenga, hoje presidente do conselho da Seção Leste-Oeste, foi AE da EBP/AMP no período de 2000-2003. As ressonâncias que hoje ecoam em nós a partir de seu testemunho, dão mostras da impressionante atemporalidade do inconsciente real.
Publicado aqui com a amável autorização da autora, o depoimento também pode ser acessado em: https://wapol.org/ornicar/articles/170alv.htm onde foi publicado originalmente.
Um amor fora dos limites da lei
por Elisa Alvarenga
Introdução
Esta plenária dedicada ao passe, anunciada sob o tema “O novo amor”, nos dá a ocasião de abordar, a partir da experiência, o que acontece com o amor ao final de uma análise. “Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, dirá Lacan, porque fora dos limites da lei.” (1) O que seria este amor? De que lei se trata aqui?
O amor, durante a análise, é mesmo condição para que haja análise, é o amor de transferência. No sujeito neurótico, este amor está estreitamente vinculado à crença no pai, a fantasia fundamental – tal como construída por Freud na fórmula “uma criança é espancada” – ao inconsciente, enfim. Daí as afirmações de Lacan, de que, no final da análise, “a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão” (2), ou “a experiência do sujeito é reconduzida ao plano onde se pode presentificar, da realidade do inconsciente, a pulsão” (3). O amor, no final da análise, está então articulado à maneira como o sujeito vive a pulsão.
No Seminário “As formações do inconsciente”, Lacan chama de lei aquilo que se articula do significante, autorizado pelo Nome-do-Pai que, no nível do Outro, como sede da lei, representa o Outro.
Em “A ética da psicanálise”, ele nos dá mais elementos para pensar o que é essa lei: a estrutura do inconsciente se regula segundo a lei do prazer e do desprazer, segundo a regra do desejo indestrutível, ávido de repetição. “A relação dialética do desejo com a Lei faz nosso desejo não arder senão numa relação com a Lei, pela qual ele se torna desejo de morte.” (4) Assim, a lei, que inicialmente seria aquela do princípio do prazer, torna-se a exigência de encontrar o que se repete, além do princípio do prazer. E dessa lei que o sujeito em análise padece, na compulsão à repetição, nos “acting-out”, na reação terapêutica negativa.
No Seminário “O avesso da psicanálise”, essa lei do inconsciente é formalizada no discurso do mestre, e o pai como figura da lei se torna, como nos diz Jacques-Alain Miller, um semblante. O Nome-do-Pai designa apenas o poder da palavra, que tem o efeito, sobre o corpo do ser falante, de mortificar o gozo. Ele é então logificado, no Seminário do “Avesso”, no significante mestre, herdeiro do Nome-do-Pai e mesmo dos Nomes-do-Pai, como uma pura função lógica (5).
Neste Seminário, Lacan define a castração como princípio do significante mestre e situa o pai real como agente dessa operação. A castração não é uma fantasia, e a causa do desejo e o seu produto. A fantasia domina a realidade do desejo articulada à lei do pai, do significante mestre.
O de que se trata, então, numa análise, é de ir além do pai enquanto agente da castração, além da lei do discurso do mestre, discurso do inconsciente: trata-se de passar da posição de sujeito assujeitado ao significante mestre àquela do sujeito que, movido pelo objeto, causa do desejo, separa-se da lei do significante mestre, o que só é possível depois de ter-se servido dela.
O encontro com a psicanálise
Uma análise que durou cerca de 12 anos, seguiu-se a duas tentativas anteriores, nas quais o sujeito se viu perdido nos labirintos do amor de transferência. Uma psicoterapia “de orientação analítica”, como se dizia, antecedera o encontro com a psicanálise lacaniana, que suscitou o desejo de ir além dos efeitos, sobretudo terapêuticos, obtidos ali.
Partiu então do país com o intuito de fazer uma tese universitária, mas logo descobriu que o que buscava era uma bússola para sua clínica: instalada como psiquiatra, começara a estudar psicanálise, mas não sabia muito bem o que fazia. “A posteriori“, dá-se conta de que não tinha então como se autorizar.
Procurava, mais do que qualquer coisa, uma orientação para sua vida: tendo passado anos em franca rebeldia aos significantes mestres, encontrava-se sem referências nas quais acreditar. Era assim que buscava, paradoxalmente, fazer existir o Outro: atacava-o, na tentativa de escapar à castração.
O encontro, decisivo, com a orientação lacaniana, se deu através do texto “A clínica do supereu”, onde Jacques-Alain Miller nos apresenta o supereu na sua versão lacaniana de imperativo de gozo. O encontro com o significante do analista se deu na mesma direção, quando assistiu, na Ecole de la Cause freudienne, a uma conferência daquele que viria encarnar esta função. Embora não entendesse muito do que ele dizia, foi pega nas malhas do significante da transferência, que a representou para o significante qualquer do analista: ele saberia algo sobre o seu sofrimento. A suposição de saber, instalada desde aquele momento, levou-a a iniciar aí uma análise, estancando sua errância ao colocá-la a trabalho. No momento de fazer o passe, ela se deu conta que o significante do analista reunira dois traços: a severidade suposta ao pai e o saber suposto à mãe.
A entrada em análise
O início foi marcado pelo desgosto em relação ao saber, manifesto em um sonho no qual esgotos escorriam das estantes, abarrotadas de livros, da sala de espera do analista. Sua questão, então desconhecida para ela, que encontrava-se toda identificada do lado masculino das fórmulas da sexuação – sujeito dividido pelo gozo fálico – já se manifestava, no entanto, em outro sonho do início da análise: o analista aparecia travestido, sob longa cabeleira de mulher.
A entrada em análise se deu após um sonho em que contava, a uma analista particularmente severa, as histórias das mil e uma noites, tal Scheherazade, que evitava assim sua morte. De fato, falar ao analista parecia-lhe a única saída possível do gozo mortífero, no qual se encontrava embaraçada. Percebeu então a vanidade de sua busca por um Outro do Outro, Um que a garantisse, com a consequente queda do analista de A a (a), do significante que o representava ao objeto (a). Esta queda, que ocorre no final da análise de maneira decisiva, é aqui o sinal de uma mudança de discurso, que acontece no momento da entrada em análise: o sujeito passa do discurso do mestre, onde um significante o representa para o analista no lugar do Outro, ao discurso histérico, onde ele se põe a trabalho interrogando o significante mestre e produzindo saber. A destituição subjetiva, que Lacan propõe para o final da análise, é aí inscrita no ticket de entrada.
O imperativo do significante mestre e a fantasia
No momento da entrada em análise, percebe, então, que a estratégia de substituição, até este momento preponderante em sua vida, estancava ali, com o isolamento de uma frase que configurava o imperativo do significante mestre, agente do discurso do inconsciente que fazia lei para ela: “Trair, ser punida.” S1, trair, S2, ser punida, incidência do Outro sobre o significante do sujeito experimentada como intenso sofrimento. Por trás dessa primeira frase, que acreditava ser a fórmula de sua fantasia, no momento da demanda de passe final, veio a descobrir uma segunda frase, que enunciava sua maneira de experimentar a castração, fantasia fundamental, velada pela estratégia encenada na primeira frase.
S1 → S2 trair e ser punida $ ◊ a eu sou abandonada
A fantasia fundamental tem sua matriz no início de sua vida, por ocasião de uma primeira perda real, a perda do pai aos 2 anos de idade. Não se lembrava do fato, mas do que a mãe lhe havia contado, de sua própria vontade de ir junto com ele. Este abandono pelo desejo da mãe permaneceu velado pelo seu esforço de cuidar da castração materna, ao qual ela se entrega, oferecendo-se falicamente para sustentar a imagem dessa primeira mulher idealizada, que seguiu carreira no estudo das letras. Essa idealização custou-lhe uma longa inibição no trabalho intelectual criativo. Aos 7 anos, um afeto depressivo testemunha do luto por realizar, encoberto pela ideia, transmitida pela mãe, de que teria que se haver com um pai muito severo, se não o tivesse perdido.
Por volta dos 10 anos, a perda se reatualiza, quando a mãe encontra um novo parceiro amoroso. Uma cena, desta época, vem exteriorizar sua posição como objeto, olhar, excluído do par formado pela mãe e seu novo companheiro, um homem que havia vivido e estudado no exterior. Está prestes a entrar na sala, quando os vê refletidos na vidraça, dançando enamorados. Sentindo-se traída, vai entregar-se, desde a adolescência, à busca de um substituto para o primeiro objeto de amor, repetindo a sua primeira frase : trair, S1 tomado de empréstimo ao Outro, ser punida, na decepção que não cessa de encontrar.
O gosto pelas línguas estrangeiras deve vir desta época, em que o casal conversava em outro idioma, do qual se via excluída. A decisão pela Medicina condensa um traço tomado emprestado ao padrasto com um antigo desejo da mãe: salvar o pai de uma doença mortal. A posição fálica de desafio ao pai encontra ocasião de decepcionar o substituto paterno escolhendo a psiquiatria, e logo, a psicanálise.
O gosto pelo estrangeiro determinara também, alguns anos depois, a escolha de um companheiro, ao qual, após algumas idas e vindas e vários anos de analise, permanecera ligada por um novo laço.
O objeto mais-de-gozo e o sintoma
Os sintomas no corpo, frequentes desde a infância, podem ser articulados à fantasia, onde o sujeito se reduz a um objeto que faz par com o Outro. O trajeto da pulsão contorna o objeto, produzindo uma satisfação masoquista no sintoma. A redução do sujeito a uma dor de ouvido, ou seja, a uma borda pulsional, fazendo apelo ao Outro, ocorrera, por exemplo, por ocasião do desvio do desejo materno para o novo companheiro. O objeto voz aparece como voz do Outro, encarnado pelo casal que conversava em língua estrangeira, assemântica para o sujeito, ao mesmo tempo fazendo supor aí o máximo de sentido.
O objeto olhar, central na construção da fantasia, indicava também o trajeto pulsional: de objeto excluído do par parental, o sujeito se faz ver, na tentativa de recuperar este olhar sobre si. Se permanece na posição de olhar, espectador excluído da cena, o gozo é recuperado no sintoma, desta vez ao nível dos olhos, convertendo ao órgão o mal-estar experimentado pelo sujeito.
O sintoma central vai se instalar após o casamento, no momento de uma tentativa de separação do Outro. Uma acentuada anorexia, de longa duração, instaura-se quando, identificada ao objeto abandonado, repete a sua primeira frase. Este sintoma, tentativa de sustentar o desejo, a duras penas, não deixa de fazer apelo ao Outro, a quem angustia, com a estratégia de recusar o que ele quer lhe dar. Trata-se de um retorno ao primeiro Outro: da fantasia de fazer-se devorar por seu amor, passa à posição de comer ou não comer, colocando o objeto oral, oferecido pela mãe, no primeiro plano. A anorexia, real, torna-se uma forma de recusa da feminilidade, do corpo, da castração, manifestando-se, enquanto mental, no não querer nada saber sobre tudo isso. Anos se passaram nessa tentativa, vã, de separar-se do Outro, que convocava com sua demanda de amor, sem nada poder receber. A castração era encontrada a cada fracasso na sua procura, sintomática, do parceiro que a faria mulher.
O trabalho de análise
É assim que chega à analise, devastada pelo imperativo de gozo do supereu. O primeiro ato do analista foi dizer-lhe não, encarnando uma função até aí em sofrimento: o pai severo foi reencontrado no semblante que ele inicialmente encarnou. Mais do que uma função significante, tratava-se da voz áfona do supereu, aquele que exige o gozo, e assim o localiza, sem nenhuma concessão ao sofrimento do sujeito. Era como se ele dissesse: coma o pão que você amassou. O efeito foi que, essa voz do supereu, encarnada aqui e ali nas fontes de devastação para o sujeito, se concentrou na voz do analista, permitindo que transferisse o seu gozo masoquista para a neurose de transferência. Em vez de continuar andando em círculos, passou a dar voltas na superfície de um toro.
Descobriu a lógica implacável do inconsciente, cujos efeitos, sobre o corpo e nos afetos, a surpreendeu. Um efeito depressivo advém, com a mortificação da libido pelo trabalho significante. A culpa ligada ao excesso de gozo dá lugar àquela devida a falta.
Devendo retornar ao país de origem, ao final do trabalho universitário, vai continuar sua análise em fatias, numa temporalidade própria ao inconsciente. No momento de retorno ao Brasil, e portanto, de uma separação forçaada do analista, demanda fazer o passe na entrada da ECF, o que funcionou como um retorno sobre o caminho percorrido. Houve aí uma tentativa de verificação da própria analise, para saber onde é que se encontrava. Os efeitos foram o desprendimento de um certo saber, construído até aí, com o vislumbre do lugar ocupado pelo analista e uma posição de trabalho decidida.
Engaja-se na construção da EBP, da qual se torna membro, e instala-se como analista, orientada, desta vez, por seu trabalho de análise. Ganhos terapêuticos são inegáveis: da posição de ser o falo, desprovida de bens e atributos da feminilidade, pode vir a ter algo: o seu trabalho, um companheiro, um filho. Continua a análise, sempre buscando no analista um sustento para o seu desejo, até um momento crucial, quase 10 anos após o início, quando um final pode ser vislumbrado.
O sujeito-suposto-saber e o objeto (a)
Uma primeira queda do sujeito-suposto-saber manifesta-se por ocasião de uma crise na Associação Mundial de Psicanálise. O analista, que até então servira como referência fundamental, cai do lugar de sujeito-suposto-saber fazer o pai, primeira queda de uma série, revelando a falta de garantia que ela tentava acobertar com a transferência. A analisante constatou, então, que o analista não podia dar-lhe o saber que esperava obter, naquele momento, sobre ser mãe. A questão da feminilidade escondia-se por trás daquela sobre a maternidade, da mesma maneira que o sujeito-suposto-saber se encontrava ate aqui articulado ao semblante paterno.
Minha hipótese é que as declinações do sujeito-suposto-saber, tais como se dão em uma análise, são estritamente correlativas do isolamento do objeto como consistência lógica. Pois, o que é o sujeito-suposto-saber, senão o sujeito do inconsciente, a trabalho, como efeito do endereçamento de um significante que representa o sujeito a um significante qualquer do analista? No início de uma análise, o sujeito, representado pelo significante do seu sintoma, endereça-se ao analista, desdobrando a cadeia de significantes na associação dita livre.
S → Sq S (S1, S2…Sn)
O algoritmo da transferência, introduzido por Lacan na “Proposição” (6), nos mostra que o sujeito-suposto-saber é um efeito desta relação, estabelecida entre o significante do analisante e o do analista. No entanto, o analista, representado pelo significante qualquer, deverá cair para o lugar do pequeno a: “O analisante só termina ao fazer do objeto (a) o representante da representação do analista.” (7) Para além de suas vestimentas imaginárias, semblantes que o analista pode encarnar para um sujeito, este o verá cair do lugar do Outro do saber ao lugar do (a), objeto libidinal.
A cada fatia de análise, até então, descobrira um elemento do seu quebra cabeça: a outra mulher, confundida com uma figura idealizada do saber; o pai, tentativa de garantia contra o gozo fálico; o objeto, tampão para a castração, sob as espécies do nada, do objeto oral, do filho. Com o olhar, manifestava-se sobretudo a inibição quanto ao saber. Embora muito curiosa, e mesmo bulímica quanto ao saber, este era do Outro, que ela tornava consistente ao colocar-se na condição de espectadora, excluída da cena onde o saber se produzia. Esta fantasia mantinha-a na anorexia mental, tal como Lacan a apresenta: as idéias eram sempre do Outro.
Este momento, que chamei de passagem além do pai, tem como consequência, na sua vida, uma emergência pulsional, um retorno da libido até então mortificada ao longo do trabalho de análise. Esta libido exige agora satisfação, para além da satisfação masoquista ligada à lógica do significante. E surpreendida por um novo desejo, que torna sua vida mais intensa, mas sem a garantia do Outro para sustentá-la em seu caminho. Da garantia da fantasia, onde o sujeito se articulava ao objeto que se propunha a ser para tampar a falta do Outro – ($ <> a) – deve agora avançar diante de um Outro barrado, ao qual falta um significante que lhe diga o que ele é. O sujeito parceiro deste Outro barrado não é mais o sujeito representado por um significante, mas o sujeito às voltas com a pulsão – (A barrado <> $).
A transferência negativa
Na próxima fatia de análise, alguns meses depois, revela-se a transferência negativa, correlata da primeira barra sobre o sujeito-suposto-saber: o analista está sob suspeita. Cai a máscara amorosa e o sujeito se interroga, na tentativa de apreender o saber depositado na experiência. O saber de que se trata de agora em diante é o saber que o sujeito devera elaborar. Sabe que não há retorno possível, mas não vê ainda a saída: vive um tempo de angústia. Esta fatia se conclui com um pensamento, ridículo, que lhe vem à cabeça e a desconcerta: o analista é desta vez dessuposto na figura do velho pai da psicanálise, enquanto a analisante se apresenta na pele de uma analista conhecida, na opinião de Freud, como mulher incurável.
Do semblante de pai severo, passando pela função de pai real, aquele que produz efeitos por suas interpretações, o analista caiu à posição de objeto libidinal, concentrando em si, paradoxalmente, o agalma e o kakon, objeto que a analisante queria vorazmente incorporar e destruir: “Eu te amo, mas porque inexplicavelmente amo em ti algo mais do que tu – o objeto pequeno (a), eu te mutilo.” (8)
O analista se torna, temporariamente, um objeto mau. O ruído que faz, rotineiramente, durante as sessões, retorna no real, sob a forma de um zumbido que a atormenta. Ele se torna um ponto negro, um corpo estranho, do qual a analisante quer se livrar, mas teme se separar. Esta aventura libidinal, onde a pulsão se revela nas suas mais diversas formas – amor, ódio, sadismo, masoquismo, ver, fazer-se ver, ouvir, fazer-se ouvir, devorar, ser devorado, expulsar, fazer-se expulsar -, excede qualquer desejo terapêutico, que tentaria acalmar a pulsão para aliviar o sujeito.
A fórmula vazia
À medida que caem as garantias, trabalha melhor na Escola, desembaraçada de alguns ideais. No próximo período de análise, a discussão de um caso, em supervisão, com outro analista, é retomada na análise, permitindo-lhe fechar mais uma volta. Ao final deste período, é surpreendida por um sonho: ela rouba uma fórmula, escrita em um pedaço de papel, das mãos de um membro da Escola, portador de atributos fálicos. Esta fórmula, suposta ensinar-lhe como fazer existir a relação sexual, não lhe ensina, no entanto, exatamente aquilo que quer. A maneira da fórmula da trimetilamina, que se apresenta a Freud no momento em que se depara com o horror da castração, este pedaço de papel, onde nada está de fato escrito, apresenta-se no sonho como uma fórmula para escrever a relação sexual.
Avisada que está das artimanhas, das peças que lhe prega o inconsciente, não fica por isso menos perplexa diante deste sonho-interpretação, no sentido em que, como o indica Jacques-Alain Miller, o inconsciente interpreta. Está ainda às voltas com este sonho, quando um outro a surpreende, claramente alusivo à separação do analista: ele mesmo lhe entrega, deixando-a só, um personagem, condensação do analista com alguém de quem deve se separar. Não tem mais com quem falar. Como um S2, este sonho ressignifica o primeiro, da fórmula vazia: pensa inicialmente que esta fórmula, não é o saber da psicanálise que vai lhe dar, mas ela mesma é quem deve construí-la, encontrando sua própria solução. Conclui, em seguida: esta fórmula não existe. Mais uma vez, dessupõe o saber ao Outro: o Outro da fórmula não existe. O modelo anoréxico de roubar as ideias dos outros, segundo o exemplo dado por Lacan na “Direção da cura” (9) – aqui, roubar a fórmula ao Outro – perde sua razão de ser.
No próximo encontro com o analista, diz-lhe do desejo de fazer o passe, antigo desejo, que não havia ainda encontrado o momento clínico, na análise, para ser colocado. Há aí uma aposta: a conclusão e a separação definitivas da análise só vão se efetivar com o ato de passar pelo dispositivo.
O passe
Entre a demanda de passe e a entrada no procedimento, vem um terceiro sonho: ela nada, no mar, agarrada a um submarino. Tem medo de se soltar e ficar perdida. De repente, o submarino está em terra firme, aberto, rodeado de gente. Desta vez o sonho lhe parece límpido. A água do mar, como em várias formações do inconsciente, representa o gozo, e o submarino o saber inconsciente, suposto, do qual ela teme se soltar. Gozo do saber, portanto. O submarino aberto, sobre a terra, rodeado de gente, representa seu desejo de exposição de saber, de transmissão no dispositivo do passe.
Ao entrar no procedimento, tem, efetivamente, dificuldades em se soltar deste saber e de separar-se do analista. Um afeto depressivo se faz presente.
O encontro, contingente, com a figura d’A mulher, ou ainda, d’A analista, ocorre após o primeiro testemunho junto aos passadores. Houve aí um verdadeiro cruzamento entre a prática como analista e o testemunho no passe. A experiência clínica colocou-a diante de um limite enquanto analista: o desejo de curar, até então inconsciente, que se manifestava numa posição de dedicação, às vezes cega, à clínica, deu lugar ao que pode reconhecer depois como desejo do analista. Dessas figuras d’A mulher e d’A analista, conclui que é melhor guardar distância. Cessa a demanda, insaciável, nesse encontro com a mulher não-toda, marcada pela castração, que encontramos do lado feminino das fórmulas da sexuação, no matema do A barrado (10). Houve aí o assentimento ao A barrado de uma analista não-toda, numa incidência do passe sobre a sua prática e vice-versa: o efeito de um encontro, na clínica, sobre o passe. Num segundo testemunho, a pedido do cartel do passe, pode transmitir que saiu dessa experiência uma analista.
A travessia da fantasia e o nome de gozo
Há muito cessara para ela o imperativo do significante mestre formulado na primeira frase, e o sujeito buscava nomear a sua posição de gozo na fantasia fundamental. Pois é preciso distinguir a produção do objeto (a) como mais de gozo, nas suas múltiplas apresentações, da produção do objeto (a) como vazio topológico, lugar do objeto ao qual se pode dar um nome de gozo. É depois da distinção do sujeito em relação ao (a), nomeado pela letra de gozo, que a experiência da fantasia fundamental se torna a pulsão.
Uma noite, pouco antes da entrada no procedimento do passe, ocorreu-lhe, de repente, que o seu nome de gozo nada mais era do que o abandono. Da fantasia fundamental: “Eu sou abandonada”, posição na qual gozava como objeto do Outro, havia passado à posição de objeto causa do desejo, abandonando o gozo fálico, no encontro com o S(A) barrado. Na travessia da fantasia o sujeito se desprendera do gozo masoquista do objeto abandonado, consentindo à posição de objeto que se abandona, como causa, ao desejo do Outro. Encontra então um gozo para-além do falo, “na escala invertida da lei do desejo” (11).
Se durante a análise a preferência dada ao inconsciente tendia a recobrir, com o simbólico, todo o imaginário e o real, um outro corte foi necessário ao final, para restaurar o nó borromeano em sua forma original, como o diz Lacan (12). Isto a impediu de continuar, infinitamente, a contar mais uma história. Não havia mais o que dizer, mas muito o que fazer, e escrever. Houve então, nas últimas entrevistas com o analista, aquilo que Lacan chamou de contra-psicanálise, no seu Seminário “L’insu que sait de l’une-bevue s’aile a mourre”. O jogo de palavras aí contido nos diz que “o insucesso do inconsciente é o amor”. Daí a necessidade da contra-psicanálise, contra o amor do inconsciente que fazia lei para o sujeito, satisfazendo-se na fantasia fundamental. É fora dos limites dessa lei que o novo amor pode viver.
Talvez por isso Lacan dissesse, no pequeno texto “O Outro falta”, que “pode-se contentar em ser Outro como todo mundo, após uma vida passada tentando sê-lo apesar da Lei” (13).