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14
“Tudo sobre o rei! (...) Que têm os reis que
a gente não tenha, senão as cerimônias, as
constantes cerimônias?”
E pelo que se refere à relação com a herança,
com os pecados do pai e a maneira como
Henrique IV se havia feito com a coroa de
Ricardo II, antes da batalha, explica muito
bem que já tem ajustadas todas as contas:
uma tumba, dois monastérios, trezentos
pobres; uma tumba nova para Ricardo, dois
monastérios com monges que cantam, e
trezentos pobres que comem graças a ele; ao
que se acrescentam suas próprias ações, que
pagam tudo. Não se deve mais falar disto,
hoje é São Crispiniano, e o que se deve fazer
é ir à batalha.
Por que Hamlet não pode atuar assim? Ele
sabe que é o dinamarquês, um equivalente
ao reino, e que o outro é um usurpador.
Um bom assassinato de Cláudio criaria um
pouco de caos, mas bastaria que ele dissesse
então, desde seu poder incrementado: “Não
vos preocupeis. Eu sou o herdeiro legítimo. E
tu, Polônio, aposenta-te!” - Durarás pouco. -
“Laertes, vejamos o que aprendeste na corte
da França; Horácio, ficas de conselheiro;
Rosencrantz e Guildenstern, continuarei
espremendo-os como uma esponja.” Hamlet
se casa com Ofélia, e continua fazendo
imortal o corpo do rei.
Mas por que Hamlet não faz nada disto? Por
que se detém horrorizado ante o ventre de
Ofélia? Não é porque lhe faltem nem força,
nem inteligência. E, no entanto, somente
morto pode calçar seu corpo a serviço da
ficção monárquica; não pode emprestá-lo
antes de ser suporte dos signos do poder.
Somente morto Hamlet pode olhar-se no
espelho de sua linhagem: somente morto,
somente num espaço entre duas mortes
realizado como sacrifício. O porquê desta sua
incapacidade, já sabemos: é um neurótico. E
o é na dimensão dos signos da realeza, a qual
é, o tempo todo, sua vocação, seu destino:
seu desejo.
Mas Shakespeare nos convida a continuar
perguntando-nos: Por que Hamlet é um
neurótico? E a solução nos dão os
clowns
coveiros. Qualquer um o sabe: Hamlet
nasceu no mesmo dia em que “o falecido rei
Hamlet venceu Fortinbrás”.
Situemo-nos na época. Um duelo como este
não se improvisava: preparava-se com tempo,
anunciava-se, as pessoas assistiam. E Hamlet
foi concebido, e logo veio ao mundo, sob
a sombra deste duelo. A rainha Gertrudes
levou um filho no ventre, que quiçá viveria,
que quiçá seria homem. E foi assim, e a bolsa
rompeu no mesmo dia em que ela corria o
risco de ficar viúva e o reino esquartejado.
Este menino seria herdeiro de um rei que,
na situação do momento, esperando a hora
fatídica do duelo de morte dos reis, já era,
por antecipação, um morto. E isto sucedia
com um rei dos tempos antigos, quando os
reis tinham um só corpo que, como nesse
caso, era idêntico ao reino.
Esta era a situação que Hamlet teve que
encontrar na repetição: um duelo que o faria,
ou morto, ou rei; e, definitivamente,
the
Dane
, o Dinamarquês.