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“Tudo sobre o rei! (...) Que têm os reis que

a gente não tenha, senão as cerimônias, as

constantes cerimônias?”

E pelo que se refere à relação com a herança,

com os pecados do pai e a maneira como

Henrique IV se havia feito com a coroa de

Ricardo II, antes da batalha, explica muito

bem que já tem ajustadas todas as contas:

uma tumba, dois monastérios, trezentos

pobres; uma tumba nova para Ricardo, dois

monastérios com monges que cantam, e

trezentos pobres que comem graças a ele; ao

que se acrescentam suas próprias ações, que

pagam tudo. Não se deve mais falar disto,

hoje é São Crispiniano, e o que se deve fazer

é ir à batalha.

Por que Hamlet não pode atuar assim? Ele

sabe que é o dinamarquês, um equivalente

ao reino, e que o outro é um usurpador.

Um bom assassinato de Cláudio criaria um

pouco de caos, mas bastaria que ele dissesse

então, desde seu poder incrementado: “Não

vos preocupeis. Eu sou o herdeiro legítimo. E

tu, Polônio, aposenta-te!” - Durarás pouco. -

“Laertes, vejamos o que aprendeste na corte

da França; Horácio, ficas de conselheiro;

Rosencrantz e Guildenstern, continuarei

espremendo-os como uma esponja.” Hamlet

se casa com Ofélia, e continua fazendo

imortal o corpo do rei.

Mas por que Hamlet não faz nada disto? Por

que se detém horrorizado ante o ventre de

Ofélia? Não é porque lhe faltem nem força,

nem inteligência. E, no entanto, somente

morto pode calçar seu corpo a serviço da

ficção monárquica; não pode emprestá-lo

antes de ser suporte dos signos do poder.

Somente morto Hamlet pode olhar-se no

espelho de sua linhagem: somente morto,

somente num espaço entre duas mortes

realizado como sacrifício. O porquê desta sua

incapacidade, já sabemos: é um neurótico. E

o é na dimensão dos signos da realeza, a qual

é, o tempo todo, sua vocação, seu destino:

seu desejo.

Mas Shakespeare nos convida a continuar

perguntando-nos: Por que Hamlet é um

neurótico? E a solução nos dão os

clowns

coveiros. Qualquer um o sabe: Hamlet

nasceu no mesmo dia em que “o falecido rei

Hamlet venceu Fortinbrás”.

Situemo-nos na época. Um duelo como este

não se improvisava: preparava-se com tempo,

anunciava-se, as pessoas assistiam. E Hamlet

foi concebido, e logo veio ao mundo, sob

a sombra deste duelo. A rainha Gertrudes

levou um filho no ventre, que quiçá viveria,

que quiçá seria homem. E foi assim, e a bolsa

rompeu no mesmo dia em que ela corria o

risco de ficar viúva e o reino esquartejado.

Este menino seria herdeiro de um rei que,

na situação do momento, esperando a hora

fatídica do duelo de morte dos reis, já era,

por antecipação, um morto. E isto sucedia

com um rei dos tempos antigos, quando os

reis tinham um só corpo que, como nesse

caso, era idêntico ao reino.

Esta era a situação que Hamlet teve que

encontrar na repetição: um duelo que o faria,

ou morto, ou rei; e, definitivamente,

the

Dane

, o Dinamarquês.