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esposa por parte de Hamlet deve ajustar-se

à lei e aos conselhos deste corpo do qual ele

é a cabeça.

Recordemos também como, depois da

frase:

The time is out of joint

, “Nosso tempo

está desnorteado”, Hamlet acrescenta:

“Maldita a sina/ Que me fez nascer um dia

para consertá-lo”. Entendamos: para colocá-

lo no Direito. E evoquemos também como

Ofélia, no cume de sua loucura de angústia,

pergunta: “Onde está a radiosa rainha da

Dinamarca?”. Trata-se da mesma majestade

que ela tinha de representar com Hamlet

depois da vingança. Mas, de algum modo,

Ofélia sabe que Hamlet foi enviado à morte

- e que a Majestade da Dinamarca é Cláudio,

um covarde “feito de remendos e retalhos”.

Hamlet, pelo que lhe diz respeito, se

comporta realmente como um rei. Não é

por casualidade que vai à Inglaterra levando

em sua bagagem o selo do dinamarquês, o

selo da Dinamarca, o de seu pai, aquele cujo

guardião é agora sua linhagem. E também

tem este sentido de assunção da realeza o

grito que profere desde dentro da tumba de

Ofélia: “Esse sou eu,Hamlet, daDinamarca.”

E também deixa claro para Horácio, quando

lhe relata a aventura do barco, que “esse que

matou o meu rei e prostituiu minha mãe;

que se interpôs entre a eleição ao trono e

as minhas esperanças”, referindo-se, claro

está, às de ser rei. Já assinalamos que suas

últimas palavras, as que lhe dão seu voto a

Fortinbrás, são as de um rei.

“Pois é; não achas que é meu dever agora

– / Com esse que matou o meu rei e

prostituiu minha mãe; / [...] que lançou o

anzol da infâmia pra pescar minha própria

vida – / Não é meu dever de consciência

abatê-lo com suas próprias armas? / E não

seria criminoso deixar que essa pústula da

natureza / Continuasse a disseminar sua

virulência?”

Aqui reside, portanto, a terceira loucura de

Hamlet: tem de ser rei. Tem de ser, portanto,

algo que é e não é ao mesmo tempo. Mas

esta coisa, essa

thing

feita de

nothing

, não

chega a sê-la senão morto.

Esta loucura se destaca ainda mais se

comparamos Hamlet comoutro personagem

com o qual Shakespeare esteve ocupado

durante a mesma época.

Kantorowicz analisa

Ricardo II

de

Shakespeare para nos ensinar os segredos

do corpo do rei. É especialmente relevante

a cena de sua abdicação; e como, quando

pede um espelho para ver-se, quebra-o em

seguida, sem poder olhar-se nele. Também

em

Macbeth

, quando as bruxas descrevem

a procissão de uma linhagem real, o último

de seus membros porta um espelho no qual

estão refletidos todos seus ascendentes.

Na tetralogia que formam Ricardo II,

Henrique IV (primeira e segunda partes)

e Henrique V, escrita na mesma época

de

Hamlet

, Shakespeare mostra uma

linhagem real, uma coroa mantida imortal

por uns reis ingleses que, mais ou menos

indignos, estiveram com tudo à altura do

poder do reino.

E, sobretudo, destacando-se sobre o

foil

,

sobre o contraste que forma Falstaff,

encontramos o que parece o contraexemplo

deHamlet: Hal, ouHarry, o futuroHenrique

V. Certamente, o espectador é sacudido por

um calafrio quando o desconsiderado Hal,

o sem-vergonha, acreditando já estar morto

Henrique IV, prova a coroa e é surpreendido

por seu pai. Apesar da desmesura deste ato,

não é de mau agouro. Quando efetivamente

morre Henrique IV, Hal é coroado como rei

Henrique V. Manda então Falstaff passear,

e faz o que tem que fazer. Logo vemos

Henrique V como um grande rei, vencedor

da batalha de Agincourt, com a qual começa

o imperialismo britânico.

Também

poderíamos

comparar

os

obstáculos de Hamlet para chegar a ser corpo

de rei. Vejam seus monólogos: “Oh, que

esta carne tão, tão maculada derretesse...”, e

contrastem com o monólogo de Henrique V

na noite anterior à batalha:

Upon the King

!