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avançou um século em relação ao continente

na identificação clássica do monarca com

o Estado, que para os franceses chegaria

a seu cume com Luís XIV. Kantorowicz

descreve minuciosamente as noções teóricas

que contribuíram com uma transformação

paulatina, que quiçá passou despercebida

para os contemporâneos, mas da qual o

gênio de Shakespeare nos permite captar

algumas dimensões.

É de destacar a interessante leitura que

Kantorowicz faz de

Ricardo II

de Shakespeare,

e a forma como mostra como a noção cristã

de

corpo místico

foi secularizando-se até

formar a noção do corpo do Estado, a qual,

do Renascimento aos nossos dias, encontra-

se vigente. Kantorowicz mostra como, desde

o Renascimento, o rei está provido, de fato,

de dois corpos: um caduco, mortal, feito

de realidade, e outro imortal, permanente,

ficção da realidade do reino. Assim se torna

possível que o rei, sendo como é, a cabeça

do Estado, seja, ao mesmo tempo, seu corpo

inteiro, e que o rei, por legitimar seu poder

pelo uso da força, passe a ser o suporte

corporal do Estado.

Na passagem da Idade Média ao

Renascimento, o rei se situa, como uma

nova e inédita figura do tempo, no espaço

intermediário entre a eternidade e a

temporalidade. Como os anjos, é criado

e temporal, ao mesmo tempo em que,

permanente como é, é um ser imortal.

A monarquia moderna nasce provida da

noção de um tempo que, mesmo sendo

infinito, possui um passado e um futuro: é

o tempo da crônica, antecedente da história

propriamente dita. E, se o corpo do rei é

uma ficção - Kantorowicz insiste no fato de

que, nascida esta doutrina na Inglaterra, não

podia consistir numa abstração, mas sim

numa ficção -, é uma

fictio figura veritatis

,

como dizia Santo Tomás, ou uma verdade

com estrutura de ficção, como diz Lacan.

O que aqui nos interessa sublinhar é que é o

corpodo rei, umcorpo instaladona dimensão

da imortalidade, o que sustenta esta ficção.

E é assim que o rei não morre nunca: ele é a

continuidade dinástica:

Corona non moritur

.

É uma ave fênix: “O rei morreu! Viva o rei!”.

O rei tem, portanto, uma existência

dupla: duplamente ameaçada, duplamente

mortal, pela morte que lhe ameaça, e pela

Outra morte, a que ameaça a coroa. Esta é,

portanto,

a

thing

, a coisa que é o rei: um

ser que tem que haver-se com estas duas

mortes. E esta é também a coisa que deve

chegar a ser o rei da Dinamarca, exatamente

no tempo que vai de Hamlet pai - um rei

tirado de uma saga medieval, que arrisca, ele

com seu

único

corpo, num duelo de morte,

um pedaço do reino - a Hamlet filho, que já

sabe que corpo de ficção são os reis.

Vemos, então, o que Hamlet tem à sua

frente: chegar a ser esta coisa, aceitar sê-la,

encarnar essa ficção que figura a verdade.

E, efetivamente, não faltam as referências

de Hamlet a seus direitos à dignidade real,

à sua legítima pretensão à coroa. E é algo

que também Laertes tem presente quando

adverte Ofélia de que a sua escolha como