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Hamlet: obra-
de-arte e
quintessência do pó
Flavia Trocoli*
Alguém já disse que são tantos Hamlets
quanto sãoos seus leitores.Então, vou limitar-
me a ler Hamlet através de seus leitores.
Essas indicações de leitura, que apresento
hoje aqui1 de maneira mais topicalizada do
que argumentativa, se organizarão através da
ênfase em um eixo problemático, a saber: a
relação disjuntiva entre pensamento e ação,
questão exaustivamente trabalhada desde o
romantismo alemão até Harold Bloom.
-
A tragédia grega – estrutura da ação trágica
:
dando destaque ao fato de que a tragédia
grega surge ao mesmo tempo que o Direito,
Vernant e Vidal-Naquet, em
Mito e tragédia
na Grécia Antiga
, propõem que a tragédia
grega sustenta-se em uma estrutura ternária
em que se enlaçam a estética, a política e a
psicologia. Diferente da epopéia em que a
ação dos homens estava ligada aos deuses e
às suas qualidades, a ação trágica é o núcleo
da tragédia, o herói é agente e paciente da
ação, é engendrado pela ação.
-
Drama de Hamlet
– pensamento sem ação:
mais de 20 séculos depois, enquanto Racine
ainda se esmerava em seguir o modelo grego,
Shakespeare reinventará, por assim dizer,
o trágico através de
Hamlet
, o herói que
justamente procrastina sua ação. Hamlet
pensa e não age.
1
Exposição na Reunião do Prática das Letras em
20/05/2016.
Depois da saída do fantasma, Hamlet diz:
“Só o teu mandamento permaneça nas
páginas do livro do meu cérebro.” Ainda
nessa direção podemos ler a enigmática frase
- “The time is out of joint”- não apenas como
um diagnóstico do seu tempo (o do terror),
mas como um entre, como uma disjunção
entre o pensamento e a ação. Tempo do
drama da sucessão que não deixa de ser
tempo, também, do luto. O Rei e a Rainha
dizem a Hamlet que ele precisa tocar a vida.
Ele reivindica o luto denunciando o tempo,
sem luto, da morte do pai e do casamento da
mãe com o tio: as carnes do enterro foram
servidas no casamento.
-
A representação – cena sobre a cena
: muitos
críticos dirão que Hamlet é um drama sobre
a representação teatral, dessa perspectiva
Hamlet é um personagem trágico em busca
da ação e que duvida dela. Em ruptura com
Édipo Rei,
Hamlet
dramatiza a perda da
unidade da tragédia clássica. Não sabe sobre
o ser e não sabe sobre o fazer. Seu drama é
ontológico e ético: parecer, fazer ou não fazer,
ser e não-ser. O que resistirá à destruição
absoluta, à voragem do nada? A própria força
do verso, a astúcia da linguagem de Hamlet.
O pensamento ilimitado diante da finitude
da vida: somos obra-de-arte e quintessência
do pó.