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guerra. Horácio recorda então os augúrios
que anunciaram a queda de César: mortos
saindo de suas tumbas, cometas e eclipses.
E apenas por uma fanfarronaria denegadora,
Cláudio zomba deste jovem Fortinbrás que
crê que, morto Hamlet pai, “nosso Estado se
tenha desagregado ou desunido”.
Recordemos também a frase de Hamlet:
All is
not well
, “Nem tudo está bem”. Ou a famosa
réplica de Marcelo:
Something is rotten in
the state of Denmark
, “Há algo de podre no
Estado da Dinamarca.” Ou também como,
ao final do primeiro ato, Hamlet utiliza
palavras parecidas com as de Cláudio, mas
o faz afirmativamente: “Nosso tempo está
desnorteado.”
É, pois, em relação a este desnorteio dos
tempos que, como diz Hamlet, “O rei é
uma coisa... de nada”. E é daí que provém a
terceira classe de loucura hamletiana.
Na obra, escutamos da boca de Hamlet
algumas manifestações que assinalam que
ele, Hamlet em pessoa, sabe muito bem o
que é ser rei, o que é ser rei nos tempos que
lhe cabe viver; e também que sabe que este rei
que agora governa a Dinamarca, um “rei só
de remendos e retalhos”, é demasiadamente
corpóreo, obsceno demais para representar a
verdade da coroa: é indigno.
Por isso pode-se capturá-lo, ao rei, sua
consciência culpada, com uma representação
teatral:
The play’s the thing, Where in I’ll catch
the conscience of the King
. “O negócio é a peça
– que eu usarei / Pra explodir a consciência do
Rei”. Isto é o mesmo que dizer que Cláudio
não está à altura de
a thing
incaptável que
o rei tem de representar. E é o próprio
Cláudio quem, justo antes do monólogo de
Hamlet
To be or not to be,
se compara com
a puta que não vale nem a coisa -
the thing
-
que lhe serve para maquiar-se.
E também, quando Rosencrantz suplica a
Hamlet que indique onde está o corpo de
Polônio, Hamlet responde: “O corpo está
com o Rei, mas o Rei não está com o corpo”,
o que assinala novamente a incapacidade de
Cláudio de ser a coisa de nada que sustenta
a coroa.
O rei, portanto, é uma coisa. É, por um
lado, o falo, a sombra alongada,
out stretched
,
ereta; é uma anamorfose; mas também é pó,
um corpo finalmente, mortal como tal. Pois
bem, esta dualidade está presente o tempo
todo em
A tragédia de Hamlet
, e a tragédia é
que nunca chega a ser sintetizada.
Certamente, na transmissão deste poder
real, de pai para filho especialmente, há algo
que falha. Mas temos de entender também
o câmbio de época que se produz entre
Hamlet pai e Hamlet filho. Com efeito,
Shakespeare os utiliza para representar
uma transformação capital que se produz
na Europa na constituição da monarquia,
uma transformação da qual a Inglaterra do
Renascimento foi pioneira. É algo sobre o
que nos ilustra o livro de Ernst Kantorowicz,
publicado nos EUA dois anos antes do
Seminário de Lacan sobre Hamlet:
The
King’s two Bodies
, ou
Os dois corpos do rei
.
Nele vemos de que maneira a Inglaterra