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em outros textos de Lispector, para além do enredo

simples, descortina-se nas entrelinhas um outro

acontecimento, que revela outra cena, em outros

parâmetros, virando a história pelo avesso.

Nessa outra cena o que se mostra é o caráter

ilícito do acesso à satisfação que pode produzir o

objeto desejado: “

Chegando em casa, não comecei a

ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto

de o ter. Horas depois abri-o, li algumas maravilhosas

palavras, fechei-o de novo, fui passear pela casa,

(...).

Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa

clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia

ser clandestina para mim.

No conto, o que torna a felicidade clandestina

é a ficção de si que não só a personagem constrói,

já que se trata de uma ficcionalização de um dado

biográfico. Ao mesmo tempo, revela a satisfação

produzida em relação a esse objeto, descrevendo-o

pela literalidade do efeito decorrente desse encontro:

Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha

delicada.

(§)

Às vezes sentava-me na rede, balançando-

me com o livro aberto no co

lo, sem tocá-lo, em êxtase

puríssimo

. (§)

Não era mais uma menina com um livro: era

uma mulher com seu amante

”.

Em “Felicidade clandestina”, expõe-se uma

verdade acerca da felicidade: acessível apenas

de modo clandestino, a delimitar o campo da

narradora como impróprio quanto a uma imagem,

sempre construída, de plenitude e a possibilidade,

pela via dessa clandestinidade (pelas beiradas), de

uma satisfação que se produz na encenação mesma

dessa transgressão, através da surpresa. O fato de

o livro cobiçado converter-se em amante ao qual

não deve entregar-se, para não correr o risco de

levantar totalmente o véu dessa ‘felicidade’ possível,

atravessada, que uma vez desvelada poderia ser

perdida, mostra que esta satisfação só pode ser obtida

‘como quem não quer nada’, isenta de qualquer

intencionalidade expressa. A satisfação maior se dá

em torno do alcance desse objeto, pelo olhar e pelo

toque, destacando a materialidade do que se faz

causa de um prazer que precisa se fingir inconfesso;

preliminares da festa envolvendo o objeto que anima

as formas de contemplação.

Como aponta Miller em “Coisas de fineza

em psicanálise”

2

, a relação do falasser com o gozo é

paradoxal, pois “o gozo que há é o que não deveria

haver”; a ficção do sujeito, a verdade mentirosa,

interfere no modo de gozo, produzindo uma fissura

que o torna inadequado. Assim, podemos considerar

2 Miller, J.-A. [2008-09]. Curso de Orientação Lacaniana: “Coisas de

fineza em psicanálise”, aula de 13/05/09. Inédito.

que, do ponto de vista da fantasia e seu enunciado

rígido, o gozo é sempre ilícito. Mas isto não significa

que não seja obtido.

No

Seminário 7

, embora as elaborações

acerca do matema da fantasia

3

($<>a) tomem

o objeto na vertente imaginária, ali já aparece

caracterizado como ponto de fixação que confere

satisfação à pulsão

4

. Lacan refere a “promoção do

objeto idealizado”

5

(leia-se: sublimação) como uma

miragem que permite “uma certa felicidade”, uma

satisfação direta por uma “mudança nos objetos

ou na libido”

6

; mais adiante especifica, com Freud,

que se trata de mudança de alvo, sem passar pelo

recalque. E relaciona isto à simbolização da fantasia,

na qual o desejo se apoia. Ao referir-se à Coisa (

das

Ding

), nesse

Seminário

Lacan procura articular

não só simbólico e imaginário, mas algo do real,

antinômico aos dois outros registros, que se coloca

como um “primeiro exterior”.

Para exemplificar o que caracterizaria a

sublimação, no que denomina “apólogo da revelação

da Coisa para além do objeto”, Lacan refere uma

prática colecionista que verificou certa vez ao visitar

o amigo Jacques Prévert. A prática de colecionar

objetos corriqueiros fora modificada por ele de

maneira muito particular, que consistia em agrupar

várias caixas de fósforos vazias, encaixadas umas às

outras, formando uma fita que contornava a lareira

e quase toda a sala pelos cantos. Ele nos mostra que

uma caixa de fósforos, que normalmente possui

a função restrita de guardar os palitos, por uma

operação, como diz, “de caráter completamente

gratuito, proliferante e supérfluo, quase absurdo

dessa coleção”

7

, dá a ver que “não é simplesmente algo

com uma certa utilidade”

8

, mas que, dependendo

do modo como é tomada, ressalta a Coisa que nela

subsiste, produzindo em seu colecionador e naqueles

que se comprazem com o que veem, uma satisfação

particular.

Hoje podemos ler retroativamente esse ponto

do

Seminário 7

, considerando que ao articular

sublimação com satisfação direta, “elevação do

objeto à dignidade da Coisa”, tendo definido esse

objeto como satisfação da pulsão implicando uma

mudança na relação do objeto com o desejo, Lacan

lançou as bases para considerar os modos de gozo do

3 Como sabemos, Lacan ainda não havia forjado o conceito de objeto a,

estabelecido 4 anos mais tarde, no

Seminário 11

.

4 Lacan, J. (1988[1959-60].

O seminário

, livro 7,

a ética da psicanálise

.

Rio de Janeiro: Zahar, p.143.

5 Idem,

ibidem

, p.126.

6 Idem,

ibidem

, p.129.

7 Idem,

ibidem

, p.144.

8 Idem,

ibidem

, p.143.