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15
em outros textos de Lispector, para além do enredo
simples, descortina-se nas entrelinhas um outro
acontecimento, que revela outra cena, em outros
parâmetros, virando a história pelo avesso.
Nessa outra cena o que se mostra é o caráter
ilícito do acesso à satisfação que pode produzir o
objeto desejado: “
Chegando em casa, não comecei a
ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto
de o ter. Horas depois abri-o, li algumas maravilhosas
palavras, fechei-o de novo, fui passear pela casa,
(...).
Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa
clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia
ser clandestina para mim.
”
No conto, o que torna a felicidade clandestina
é a ficção de si que não só a personagem constrói,
já que se trata de uma ficcionalização de um dado
biográfico. Ao mesmo tempo, revela a satisfação
produzida em relação a esse objeto, descrevendo-o
pela literalidade do efeito decorrente desse encontro:
“
Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha
delicada.
(§)
Às vezes sentava-me na rede, balançando-
me com o livro aberto no co
lo, sem tocá-lo, em êxtase
puríssimo
. (§)
Não era mais uma menina com um livro: era
uma mulher com seu amante
”.
Em “Felicidade clandestina”, expõe-se uma
verdade acerca da felicidade: acessível apenas
de modo clandestino, a delimitar o campo da
narradora como impróprio quanto a uma imagem,
sempre construída, de plenitude e a possibilidade,
pela via dessa clandestinidade (pelas beiradas), de
uma satisfação que se produz na encenação mesma
dessa transgressão, através da surpresa. O fato de
o livro cobiçado converter-se em amante ao qual
não deve entregar-se, para não correr o risco de
levantar totalmente o véu dessa ‘felicidade’ possível,
atravessada, que uma vez desvelada poderia ser
perdida, mostra que esta satisfação só pode ser obtida
‘como quem não quer nada’, isenta de qualquer
intencionalidade expressa. A satisfação maior se dá
em torno do alcance desse objeto, pelo olhar e pelo
toque, destacando a materialidade do que se faz
causa de um prazer que precisa se fingir inconfesso;
preliminares da festa envolvendo o objeto que anima
as formas de contemplação.
Como aponta Miller em “Coisas de fineza
em psicanálise”
2
, a relação do falasser com o gozo é
paradoxal, pois “o gozo que há é o que não deveria
haver”; a ficção do sujeito, a verdade mentirosa,
interfere no modo de gozo, produzindo uma fissura
que o torna inadequado. Assim, podemos considerar
2 Miller, J.-A. [2008-09]. Curso de Orientação Lacaniana: “Coisas de
fineza em psicanálise”, aula de 13/05/09. Inédito.
que, do ponto de vista da fantasia e seu enunciado
rígido, o gozo é sempre ilícito. Mas isto não significa
que não seja obtido.
No
Seminário 7
, embora as elaborações
acerca do matema da fantasia
3
($<>a) tomem
o objeto na vertente imaginária, ali já aparece
caracterizado como ponto de fixação que confere
satisfação à pulsão
4
. Lacan refere a “promoção do
objeto idealizado”
5
(leia-se: sublimação) como uma
miragem que permite “uma certa felicidade”, uma
satisfação direta por uma “mudança nos objetos
ou na libido”
6
; mais adiante especifica, com Freud,
que se trata de mudança de alvo, sem passar pelo
recalque. E relaciona isto à simbolização da fantasia,
na qual o desejo se apoia. Ao referir-se à Coisa (
das
Ding
), nesse
Seminário
Lacan procura articular
não só simbólico e imaginário, mas algo do real,
antinômico aos dois outros registros, que se coloca
como um “primeiro exterior”.
Para exemplificar o que caracterizaria a
sublimação, no que denomina “apólogo da revelação
da Coisa para além do objeto”, Lacan refere uma
prática colecionista que verificou certa vez ao visitar
o amigo Jacques Prévert. A prática de colecionar
objetos corriqueiros fora modificada por ele de
maneira muito particular, que consistia em agrupar
várias caixas de fósforos vazias, encaixadas umas às
outras, formando uma fita que contornava a lareira
e quase toda a sala pelos cantos. Ele nos mostra que
uma caixa de fósforos, que normalmente possui
a função restrita de guardar os palitos, por uma
operação, como diz, “de caráter completamente
gratuito, proliferante e supérfluo, quase absurdo
dessa coleção”
7
, dá a ver que “não é simplesmente algo
com uma certa utilidade”
8
, mas que, dependendo
do modo como é tomada, ressalta a Coisa que nela
subsiste, produzindo em seu colecionador e naqueles
que se comprazem com o que veem, uma satisfação
particular.
Hoje podemos ler retroativamente esse ponto
do
Seminário 7
, considerando que ao articular
sublimação com satisfação direta, “elevação do
objeto à dignidade da Coisa”, tendo definido esse
objeto como satisfação da pulsão implicando uma
mudança na relação do objeto com o desejo, Lacan
lançou as bases para considerar os modos de gozo do
3 Como sabemos, Lacan ainda não havia forjado o conceito de objeto a,
estabelecido 4 anos mais tarde, no
Seminário 11
.
4 Lacan, J. (1988[1959-60].
O seminário
, livro 7,
a ética da psicanálise
.
Rio de Janeiro: Zahar, p.143.
5 Idem,
ibidem
, p.126.
6 Idem,
ibidem
, p.129.
7 Idem,
ibidem
, p.144.
8 Idem,
ibidem
, p.143.