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detalhes do crime levados a cabo por um tal Luciano, que

o próprio Hamlet assinala como sendo “o sobrinho do rei”.

Lacan e vários comentadores indicam a agitação que move

Hamlet durante esta representação, diferentemente do que

acontece com o rei, que permanece impassível; por sua vez,

quando se passa ao texto da obra, que será recitado pelo rei

e pela rainha da comédia, produz-se não só a perturbação do

assassino, mas também a interrupção da representação com

o célebre

Give me some light

– estes são os signos da culpa. É

o momento do triunfo maníaco de Hamlet mas, no entanto,

logo se demonstra ser insuficiente para permitir-lhe sair da

inibição. O que Lacan enfatiza aqui é a desorganização em

que cai sua conduta.

O tema, então/portanto, é a função da

play-scene

. Há

aqui uma questão: a quem vai dirigida a armadilha da ratoeira

quando, ao final do 2º ato, Hamlet diz: “

The play´s the thing

wherein I´ll catch the conscience of the king

.

?

(A obra é a coisa

com a qual capturarei a consciência do rei.)

O que fica claro no desenvolvimento da cena dentro da

cena é que Hamlet não apenas arma este espelho do espetáculo

como ratoeira para seu tio ou para sua mãe buscando índices

de sua cumplicidade, mas também para pôr-se a si mesmo em

cena. Haver-se deixado tomar no caminho por sua própria

imagem, esta é a armadilha.

Então, o que Hamlet faz representar sobre a cena? A

resposta de Lacan no

Seminário A angústia

é que é a ele mesmo

que representa, neste tal Luciano sobre o rei da comédia,

consumando o crime no momento da pantomima, e conclui:

com este personagem, Hamlet trata de dar corpo a algo que

passa por intermédio de sua imagem propriamente especular,

não no modo de realizar sua vingança, mas como modo de

assumir primeiro o crime que logo tratará de vingar

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. Mas

a identificação especular com o assassino mostrará ser não

suficiente para que Hamlet execute o ato solicitado pelo

ghost.

Para que isto seja possível, será necessária outra

identificação de natureza completamente diferente, uma

identificação com o que Lacan chama, em 1962, de

alma

furiosa da vítima

, com Ofélia, a suicida. Será necessária esta

outra identificação para que possa encontrar-se com seu

desejo e encaminhar-se ao encontro mortal com seu próprio

ato.

Para situar a cena do teatro no teatro, é preciso articulá-

la com a cena anterior e com as que seguem. Na anterior, os

comediantes representam um episódio que Virgílio descreve

na Eneida. Hamlet fica surpreendido pela emoção que

capta num ato ao representar uma ficção que, no entanto,

lhe é alheia. Decide então tomar partido do teatro como

estratagema, montando, como uma ficção, a verdade excluída

que foi denunciada pelo fantasma do pai.

A consequência imediata à

play-scene

é que, embora

tenha a oportunidade de matar o rei ao surpreendê-lo

rezando, não pode fazê-lo. O pretexto

: “Ficarei vingado ao

surpreendê-lo enquanto purifica sua alma? A espada não poderia

buscar ocasião mais horrível”.

Como assinala Lacan, é um

pretexto que não conseguiu convencer ninguém.

Desta ocasião rejeitada, há uma consequência a tirar

que se relaciona à

play-scene

e sua limitação.

A explicação que Lacan oferece no

Seminário A angústia

sobre a postergação do ato é distinta da proposta nas lições de

1959. Retoma o tema da

play-scene

e sua vinculação à inibição

para realizar o ato. Assinala que, para poder atuar na cena de

sua própria missão – matar o tio –, Hamlet arma esta outra

cena, mas que o espelho desta representação sobre a cena é

insuficiente para desencadear o ato necessário. Identificar-se

com o assassino da cena representada lhe devolve a imagem

do assassino, mas apenas a imagem não basta para fazer o que

tem que fazer e não faz. Isto só pode ser feito pelo sobrinho

de comédia.

No gabinete da mãe, celebrar-se-á a célebre

closet-scene

,

o outro estereótipo com o qual se denomina a cena que ocorre

frente a um toucador ou escritório com um espelho, como

mostra toda a iconografia clássica segundo as ilustrações de

Simmonds.

Em sua autobiografia, Laurence Olivier comenta

que não conseguia entender a natureza da dificuldade que

Hamlet tinha para levar a cabo o que devia fazer; perguntava-

se pelo enigma de seu conflito interior. Foi assim que,

tentando entender o personagem, leu a obra de Jones, ”Uma

explicação do mistério de Hamlet: o Complexo de Édipo”.

Pareceu-lhe um trabalho maravilhosamente esclarecedor e

decidiu consultar o autor para falar do tema.

“O professor

se empenhava em dizer-nos que este complexo é inconsciente

e que, tanto para Hamlet como para Shakespeare, a natureza

do conflito lhes escapa”

, diz Olivier,

“no entanto, para mim, a

explicação psicanalítica dava toda uma possibilidade de entender

esta incapacidade absoluta de Hamlet de levar adiante o que se

esperava dele, assim como suas mudanças de humor”9.

É a partir

das conversas com Jones que o leito matrimonial é o primeiro

que aparece aos olhos do espectador na versão filmada.

Nesta cena intensa que Lacan comenta dizendo que

”chega ao limite do suportável por sua crueza”, Hamlet diz

coisas à mãe como: “

o hediondo suor de um leito infecto”

ou

“a corrupção dos mimos do amor”

,

expondo com toda clareza

que o ponto fundamental é o desejo da mãe. Este é o desejo

enigmático que desperta seu horror, que o pai possa haver

fracassado como causa do desejo de sua mãe.

É este o Outro central para Hamlet, porque o fantasma

do pai também resulta totalmente submetido ao desejo

da mãe, inclusive reaparece nessa cena para retê-lo em sua

violência dizendo-lhe:

“ponte entre ela e sua alma em luta…

Falai com ele”.