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o estilo texto final. Caberia, então, finalmente se

perguntar por que motivo o trabalho sobre estilo se

coloca, para Lacan, na transição da monografia para

a obra fundadora.

Não me compete, decerto, dissertar aqui

sobre o vasto problema do estilo, em Jacques Lacan,

sobretudo porque já existe, a esse respeito, uma

referência inultrapassável: o livro de Gilson Iannini,

que já circula em sua segunda edição. A questão da

estilística interessa-me tão somente como ponto

sobre o qual se apreende a função unificante do

autor, pois é dessa função unificante que depende,

conforme dizíamos anteriormente, a unicidade da

obra que diferencia a doutrina da multiplicidade

geral da cultura, conferindo sua autonomia própria.

Por longo tempo se supôs que o autor da

obra só seria apreensível, no que ele tem de único,

ou seja, naquilo que não se ensina, que somente

ele poderia dizer, através do estilo. Por isso, o estilo

foi considerado pela crítica literária, representada

sobretudo por Sainte-Beuve, como a ponte que nos

conduz à unicidade do autor, revelando-o em sua

intimidade. Havia uma espécie de devoção religiosa

ao estilo, como se nele estivesse depositado o selo de

garantia da obra. Se a obra é a expressão da unidade

da doutrina, o autor seria sua função unificante,

função do Um que só poderia ser captada a partir do

estilo como marca do íntimo do autor em primeira

pessoa na obra, cabendo à crítica literária o trabalho

de seu desvelamento. Porém, Lacan já desconfiava

dessa solução de Sainte-Beuve, que consiste em

buscar na relação do autor com o estilo o princípio

de unificação da obra. Seu programa de retorno a

Freud é contemporâneo de um movimento crítico

destinado a desconstruir precisamente, em sentido

contrário, o culto ao autor como princípio de

ordenação do texto. Atento a tudo o que se passava

a sua volta, Lacan não desconhecia o surgimento,

a partir dos anos 60, de uma corrente crítica

representada, sobretudo, por M. Foucault e R.

Barthes, que associava a importância conferida

à figura do autor a uma visão individualista que

concebe a obra nos termos burgueses da mercadoria

e do patrimônio intelectual.

A começar por Barthes, em “Amorte do autor”,

essa primazia dada ao personagem autoral não mais

seria do que uma ficção historicamente datada do

homem moderno, determinada tanto pela produção

do prestígio pessoal do indivíduo com a ideologia

da Reforma, quanto pela necessidade capitalista

de se unificar o produto do pensamento na forma

mercadoria. Para Barthes, o autor deveria deixar de

querer ordenar a unidade da obra, dando espaço a

uma verdade impessoal, não comandada pela figura

do eu. O que conta é o que o leitor entende, e não o

que o autor quis dizer.

Por sua vez, Foucault, quando dirige sua crítica

à função do autor, também rejeita a ideia de um

caráter natural e espontâneo dessa figura. A figura

do autor nada mais é do que uma ficção moderna

coextensiva de um modo de organização social e

política surgido com o aparecimento do capitalismo,

a partir do século XVI, ao qual se articulam tanto

inovações tecnológicas, como a invenção da

imprensa de Gutenberg, quanto jurídico-penal,

como a criação do códex e do direito autoral,

além de motivações tanto estéticas, como o mito

romântico do gênio criador, quanto comerciais,

como as estratégias de vendagem e as premiações. É

nesse sentido que, ao meditar sobre a ideia do autor

como princípio de unicidade da obra, Foucault nos

revela seu constrangimento em se constituir ele