![Show Menu](styles/mobile-menu.png)
![Page Background](./../common/page-substrates/page0141.png)
17
Comentário sobre
“
AMOR
”,
de Clarice
Lispector
Gustavo Dessal
Ainda que uma das regras obrigatórias do relato
breve seja a de introduzir o leitor na trama sem demora
alguma, nem todos os escritores desse gênero o conseguem
com a mestria que a autora demonstra neste conto. Nos
primeiros parágrafos já nos encontramos com todas as linhas
de força argumentativas e, ainda que só ao final saibamos o
que vai acontecer, isto já está antecipado desde o começo.
Uma mulher. Uma mulher, e poderemos nos
perguntar se é uma entre tantas outras, uma como a maioria,
ou se é alguém especial. O conto nos submerge de imediato
em uma atmosfera de sensualidade, de sensorialidade intensa.
Não posso deixar de sorrir ao pensar como os homens tendem
a concentrar seu interesse e sua atenção em um pequeno setor
da realidade. Quando o fazem, o resto deixa de existir. Para
isto lhes serve o falo. Elas, em contrapartida, estão abertas
ao mundo, inclusive ao cosmos, se exagero um pouco. Será
por esse motivo que a natureza lhes afeta de outra maneira?
Estão atentas à temperatura, ao sol, à chuva. Um dia nublado
lhes diz algo, ou muito. Pode inclusive lhes alterar o ânimo.
Eles, entretanto, estão ausentes de tudo isso, sua libido posta
na pequena coisa. O resultado disto é que elas tenham uma
relação distinta com a vida, na medida em que esta é animada
por um gozo do qual nós, humanos, estamos separados pela
fronteira da linguagem. A elas, a linguagem não contém
totalmente. Os homens o sabem desde sempre, e por isto
a imemorial desconfiança em relação às mulheres. Nelas há
sempre uma janela entreaberta, e por essa janela intuem o
mundo que está além da fronteira. Isto não lhes impede –
muito pelo contrário – de desdobrar-se e se entregar com
devoção ao dever de velar pelo íntimo, o centrípeto: os filhos
e o fogo. Em todas as culturas, no Oriente e no Ocidente,
têm sido elas as encarregadas de cuidar a prole e vigiar o fogo,
para que permaneça acesso. Ana cria seus filhos e cuida dos
fogões de sua cozinha.
“O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para
sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que
tantas vezes se confundira com felicidade insuportável.”,
escreve Lispector no conto. E um pouco antes: “Sua
juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de
vida.”. Não obstante, essa outra felicidade, fora do âmbito
da existência com a qual havia consentido com absoluta
convicção, permanece à espreita. Ela sabe disso, pressente.
Por isso aprendeu a tomar suas precauções para manter-se
afastada de tudo aquilo: Sua precaução reduzia-se a tomar
cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia
sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família
distribuído nas suas funções”. E se acaso se aproximasse o
espanto dessa felicidade à qual renunciara para entrar em seu
“destino de mulher”, ela saberia o que fazer para sufocá-lo.
Eis se produz um encontro ao acaso. Uma
contingência traumática. Uma contingência traumática é a
irrupção inesperada, súbita, brutal, de um elemento que não
pode integrar-se na trama do sentido. A trama do sentido é
o que nos mantém unidos ao sentimento de continuidade
da vida. A trama do sentido é a bolsa com as compras que
Ana carrega, uma tela, uma rede tecida que contém, que nos
contém, que a contém. O elemento súbito é um olhar. Não
há nada melhor do que um cego para demostrar o poder
do olhar, que é capaz de ver para além do visível. Isto se
sabe desde sempre. Por isso Tirésias, aquele que tudo vê e
antecipa, tem os olhos cegos. Temos olhos para não ver, diz
o Eclesiastes. Temos olhos para não ver que o olhar nos olha.
E é melhor não ver isto em demasia. O encontro de Ana
com esse olhar rompe algo, o mundo contido na malha do
sentido escorrega e ela se extravia, se perde nesse outro mundo
incerto onde tudo transborda, sai do seu contorno e de sua
forma. Esse outro mundo cuja metáfora é o Jardim Botânico,
onde o Éden não se distingue do inferno: “O jardim era tão
bonito que ela teve medo do inferno”. Como Ana consegue
regressar ao lar do sentido, à casa onde seu corpo encontrou
sua morada e seu apoio? Lembrando de seus filhos. Mas,
inclusive na familiaridade do cotidiano, algo se mostra
diferente. Talvez Ana esteja louca, ainda que me incline a
pensar que não está e que, tão somente, experimentou, por
um breve lapso, uma saída através da janela entreaberta pela
qual uma mulher pode sair um pouco, esta janela aberta nas
fronteiras fechadas da Lei.
__________
Trad.: Marcela Antelo
Rev.: Teresinha Prado