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próprio como autor, ao ser convocado a escrever

o prefácio da 2ª edição de seu livro

História da

loucura

. Foucault não queria se colocar como autor

que assume a autoridade do que enuncia, e se sentia

particularmente incomodado por entender que no

prefácio o autor é chamado a prescrever o sentido do

que foi escrito. Por isso, ele nos conclama a tomar

suas palavras não como proposições unificadas pela

função autoritária do autor, mas acolhidas em sua

fragmentação dispersa. Ao invés de ser respeitado

pela autoridade de sua obra, Foucault pede para ser

traído, deformado e esquecido. “Ao invés de tomar

a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e ser

levado para além de todo começo possível [...]. Em

vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria,

antes, ao acaso de seu desenrolar, o ponto de seu

desaparecimento possível”, e blá-blá-blá...

A bem da verdade, por mais irresistível que seja

a modéstia de Foucault ao despir-se da autoridade do

autor, e apesar de todo respeito que temos por ele,

ainda assim não podemos ceder a esse devaneio no

campo da psicanálise. Estamos cientes do que ocorre

quando se entrega o texto à apropriação irresponsável

do leitor anônimo, conforme se viu na deturpação

sofrida pela doutrina freudiana em sua recepção

pelo contexto americano. Seja qual for a derrisão

contemporânea do autor, não podemos deixar de

interrogar, pelo menos no campo da psicanálise,

sobre o que queriam dizer seus fundadores. Por isso,

interessa-nos meditar sobre o que o próprio Lacan

tinha a dizer sobre a obra que ele nos endereçava,

em 1966.

Ora, o prefácio, já dizia constrangidamente

Foucault, é o lugar em que o autor vem dizer como

se organizam seus enunciados. O prefácio é o que,

na obra, mais se assemelha a uma carta em que o

autor tenta explicar ao leitor como ele gostaria de ser

lido. Vale, então, salientar que, para nossa felicidade,

Lacan nos endereçou, em seus

Escritos

, vários textos

que funcionam como prefácios, dentre os quais

gostaríamos de comentar o primeiro, curtíssimo e

luminoso, que se coloca na porta de entrada de sua

obra, intitulado “Abertura desta coletânea”.

Lacan inicia esse texto a partir precisamente de

um comentário sobre a questão do estilo, evocando

a célebre fórmula endereçada por Buffon à Academia

Francesa de Letras, por ocasião de seu laureado: o

estilo é o próprio homem. É importante ali notar

que no lugar em que o culto do estilo reverencia o

personagem do autor, na figura do grande homem

que ordena sua obra, Lacan nos convida a meditar

sobre o que há de jocoso nessa figura do grande

homem, representada por Buffon em seus trajes

burlescos. Ao se colocar como autor de uma obra,

Lacan não se deixa enredar por essa fantasia do

grande homem. O ridículo dessa fantasia estilística

do grande homem, aos olhos de Lacan, é não

entender que o estilo depende não da eminência

do autor, mas do laço que o constitui em seu

endereçamento ao Outro, na forma da mensagem

que lhe retorna invertida. Nesse sentido, Lacan

concebe o estilo não como uma entrega autoral da

obra pronta a um leitor admirativo já presente, mas

como meio de construção da obra através do leitor

não dado, porém criado pelo seu endereçamento. A

questão do estilo diz, portanto, respeito a quem vem

a ser o leitor que ele faz existir.

Vale lembrar que a questão do “quem” é

aqui particularmente sensível, uma vez que o

estilo tradicionalmente se aborda, conforme vimos

anteriormente, como marca do íntimo do autor em

sua obra, na primeira pessoa. Mais importante do

que a crítica de Foucault e de Barthes, a propósito

da ideologia do culto ao autor, a grande subversão

que interessa a Lacan vem não do Estruturalismo,

mas do escritor Marcel Proust, grande herege

que abalaria as fundações da igreja do estilo ao

denunciar como impostura o trabalho de Sainte-

Beuve2. Para demonstrá-lo, Proust escreveria em

1919 os

Pastiches et mélanges

, conjunto hilário de

versões pseudoautorais de um mesmo assunto, onde

se evidencia que a figura do estilo, supostamente

advindo do íntimo na primeira pessoa do singular,

na verdade não comporta indexação pronominal.

Os pastiches têm por tema comum o

affaire

Lemoine, notícia que circulou nos jornais nos

anos de 1908 e 1909: um escroque chamado

Henri Lemoine, que dizia ter descoberto o segredo

da fabricação do diamante, recebeu um soma

considerável do Senhor Julius Werher, enganando-o

com experimentos falseados. Os pastiches de Proust

relatam o caso Lemoine no estilo de Balzac, Flaubert,

Sainte-Beuve, Michelet, entre outros, seguindo uma

narrativa indistinguível dos autores referidos. Mas os

pastiches não são apenas um anedotário destinado a

nos fazer rir. O que Proust ali questiona é justamente

o

quem

referido ao estilo, mostrando que ele não

comporta vínculo natural com a primeira pessoa,

ao ser realocado na prosa romanesca de maneira

indistinta. Mas o que acontecia quando Proust

escrevia, sem que ele soubesse, provoca J.-C.

Milner, é que no mesmo período em que ele redigia

2 Indispensável ler, a esse respeito, J.-C. Milner, L’écrivain sans

église,

disponível

em:

< http://www.academia.edu/18563827/ L%C3%A9crivain_sans_%C3%A9glise >

.