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A conclusão, que todos conhecemos, é que a
forma da obra triunfou, abrindo espaço para o texto
psicanalítico no contexto da cultura, ainda que,
como diz J.-C. Milner, a um altíssimo preço: a horda
selvagem dos Jungs, Reichs, Ferenczis e Adlers que
Freud teve que suportar. Com o detalhe de que cada
um deles queria se constituir como obra à parte, com
sua corte de prosélitos, menos pela força de uma
decisão do que pela banalidade do querer voluntário.
Para assegurar a unidade do campo psicanalítico,
evitando sua dispersão nas obras individuais, seria
necessário fundar uma IPA como dispositivo de
regulação doutrinária: à exceção da obra fundadora,
só deve haver monografias no campo psicanalítico
(MILNER, 1995, p. 17).
A sequência é também conhecida: a IPA
se consolidou como um sistema doutrinário
relativamente estável, estendendo-se, sobretudo,
para os países de cultura anglo-saxônica. Porém,
sabemos que, algumas décadas mais tarde o campo
psicanalítico, assim constituído, se desestabilizaria
com a introdução de um novo enclave produzido
por Jacques Lacan. Os motivos circunstanciais estão
reportados: eles se iniciam com o julgamento de
Lacan por parte do alto clero da IPA francesa, que
o condenava pelo uso supostamente indevido das
seções curtas. Inicialmente impedido de exercer suas
atividades de analista didata, Lacan viria em seguida
a perder o auditório do Hospital Saint’Anne, onde
há uma década se realizava seu seminário semanal,
para finalmente ser banido da Sociedade Francesa de
Psicanálise, formalmente vinculada à IPA, em 1964.
O campo psicanalítico se fechava para Lacan.
Mas deixemos, todavia, de lado o drama
historiográfico da ex-comunicação. Retenhamos,
somente, pelo momento, que Lacan, longe de ser o
enfant rebelle
que tantos imaginam, soube consentir
com a monografia no período em que seu contexto o
permitia. Ele não somente publicou diversos escritos
monográficos, ao longo de sua vida, como também
dirigiu uma importante revista –
La psychanalyse
– destinada a esse tipo de divulgação. Se Lacan
consentiu em adotar tardiamente o desvio pela obra
com a publicação dos
Escritos
, em 1966, foi por
considerar que o contexto absorvera a psicanálise,
transformando-a numa prática de gerenciamento
de almas que não deixava mais lugar para o texto
freudiano. A necessidade de um novo enclave
se impunha. Uma vez mais seria preciso fazer-se
obra; mais uma vez seria necessário, para retomar
a expressão de Jean-Claude Milner, descer ao
Aqueronte da cultura para reabrir espaço à doutrina
psicanalítica.
Eu acreditava ver, contudo, uma singularidade
nesse fazer-se obra, nessa descida ao Aqueronte de
J. Lacan. O singular é que Lacan não constrói um
escrito destinado a constituir-se como obra, como
foi o caso da
Traumdeutung
freudiana, a qual seguia
canonicamente as normas de revisão bibliográfica,
recolocação do problema, estabelecimento de
hipóteses e finalmente fundação de uma nova
perspectiva para tratar o objeto assim constituído.
Houve, a bem da verdade, o projeto de um livro
fundador intitulado
O questionamento da psicanálise
que Lacan anunciou, sem, contudo, jamais levar
essa ideia a cabo. Agradava-me, portanto, pensar
que a obra de Lacan teria algo que se aproxima do
ready-made
de Marcel Duchamp. Assim como uma
roda de bicicleta se converte em obra de arte pelo
gesto calculado de deslocamento de sua posição na
percepção social da mercadoria, transportando-a
para a sala de exposição de um museu, o conjunto
das monografias de Lacan parecia ter-se convertido
em obra pelo simples gesto que as encadernar num
volume intitulado
Escritos
. Um dado parecia, aliás,
confirmar minha hipótese. Conforme nos relata J.
Derrida, logo após publicar seus
Escritos
, o que Lacan
temia não era que o conteúdo de seu livro fosse mal
compreendido ou criticado. O seu principal temor,
confidenciara ele a Derrida, era de que os
Escritos
se desencadernassem, que a costura da encadernação
não suportasse o volume de textos, que a obra,
enfim, perdesse sua unidade material e se espalhasse.
Encantava-me interrogar esse fenômeno, para
pensar a ideia do objeto-livro: como uma obra pode
se constituir pelo simples gesto de encadernação de
textos monográficos?
Mas minha hipótese não era exata, eu estava
mais uma vez enganado. Por indicação de Gilson
Iannini, coloquei-me a ler a pesquisa historiográfica
de Jorge Baños Orellana,
El escritorio de Lacan
,
livro em que o autor nos demonstra que os Escritos
nada tinham de um
ready-made
. Para preparar sua
obra, Lacan não se contentou em transportar seus
escritos monográficos para o interior de um volume
encadernado. Ele, na verdade, se fechou numhotel de
Paris, onde permaneceu de março a outubro de 1966
relendo seus textos, reescrevendo-os e reexaminando
as provas a serem enviadas para a edição final.
Conforme os procedimentos de análise genética
comentados por Baños Orellana evidenciam, houve
ali, durante esse período, um grande trabalho de
transformação, destinado, sobretudo, a reelaborar