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Clandestinos
amores
Teresinha N. M. Prado
[AMP/ EBP-SP]
Em resposta à provocação lançada por Marcela
Antelo, para que cada colega produzisse um texto a
partir de uma lembrança de leitura proibida, ocorreu-
me pensar algo de proibido no contexto da leitura e
não propriamente relacionado a seu conteúdo, e é o
que tentarei explanar a seguir.
Aos 8 anos, a família mudou-se para um
sobrado mais novo, em bairro mais tranquilo. No
quintal dessa casa havia um ‘quartinho’, construído
para as coisas que já não tinham lugar. Para mim,
contudo, era o refúgio onde passava muitas horas
do dia; lugar em que encontrava um universo
inteiro a explorar, por vezes mais instigante do que
as brincadeiras com outras crianças. Havia objetos
antigos, revistas, discos, brinquedos abandonados
pelos irmãos mais velhos e livros... muitos e variados
gêneros, cuja procedência me era desconhecida. Ali
podia praticar a maior das transgressões: ler. Através
dos livros descobria (e imaginava) um passado que
me ultrapassava e que jamais escaparia à genealogia
fantasiada, movida por um insaciável desejo de saber.
O que começara, anos antes, com uma
incontida inclinação por desmontar objetos,
sobretudo engenhocas que faziam funcionar ‘alguma
coisa’ (impulso que fora inibido pelo susto de
provocar um curto-circuito ao tentar desmontar
e remontar uma pequena luminária, no quarto
paterno), encontrara destino menos arriscado nas
‘expedições arqueológicas’ do fundo do quintal e
numa atividade de ‘contemplação ativa’. Embora
nem sempre se tratasse de leituras cujo teor fosse
efetivamente proibido, o sentimento era de constante
suspense: a possibilidade (e o risco) de ser flagrada
em atividade tão prazerosa tornava aquele depósito,
construído em dois níveis no rumo de um barranco,
o refúgio ideal para as incursões investigativas entre
o final da infância e o início da pré-adolescência,
quando surgiram na cena outros atores e outros
interesses...
Não é difícil identificar nessa reminiscência
o terceiro destino que Freud, nos “Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade”, descreveu acerca
da “pulsão de saber” e sua relação com a posterior
curiosidade investigativa, pela via da sublimação,
com componentes da pulsão de dominação e da
pulsão escópica. Essa passagem é também destacada
por Freud em seu artigo sobre Leonardo da Vinci
(1910). Mas o que pode fazer uma atividade de
leitura parecer transgressora, mesmo que o conteúdo
do que se lê não o seja? Guardemos esta pergunta.
Para tentar respondê-la, buscarei o auxílio
da literatura. Há um conto de Clarice Lispector
intitulado “Felicidade clandestina”, que vale a pena
destacar aqui. Em primeiro lugar, o título. Evoca
algo que perpassa o texto, acerca do modo como
a narradora se sente desde a infância (a narrativa é
também uma reminiscência), como se a felicidade lhe
fosse algo ilícito. Mas, no contexto desta discussão,
chama-me a atenção a palavra “clandestina”. Se
recorremos ao dicionário, encontramos duas acepções
convergentes e semelhantes ao tema proposto: ilegal,
ilegítimo, feito às escondidas1. Aliás, as mesmas
palavras presentes no verbete “proibido” (donde a
aproximação...).
Voltemos ao conto. O ponto forte desse texto
não é a história, que traz a lembrança de alguém cuja
infância fora pobre, uma menina aficcionada por
livros e seu sofrimento resignado –
“Eu já começara a
adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito
(...).” – ao ver-se nas mãos de outra menina, esta
filha do dono da livraria, detentora de um objeto
que a rival ansiava obter, e que se divertia com sua
frustração a cada vez que adiava o empréstimo do
livro. Um amor quase proibido, dadas as condições
socioeconômicas da narradora,
As reinações de
Narizinho
, de Monteiro Lobato: “
era um livro para se
ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o
”. Como
1 Cf. Dicionário Aurélio eletrônico.