
PIERRE SIDON – (ECF/AMP)
Dentre as definições da toxicomania e das adicções, a famosa tese repercutida, por exemplo, no célebre Manual de Psiquiatria, de Henri Ey, comporta a ideia aparentemente psicanalítica de “regressão a um prazer parcial”: “a conduta específica, do tipo perverso, que constitui uma regressão instintivo-afetiva, um verdadeiro e profundo desequilíbrio na integração das pulsões.”(1) A ficção de uma possível integração harmoniosa das pulsões, desprezada por Lacan, levou, durante algum tempo, à popularização desta concepção deformada do quadro estrutural freudiano da perversão, retratada como a perversão polimorfa, simplesmente tornada possível pela redução do tóxico a um novo objeto parcial. Esta concepção rudimentar não resistiu ao uso, nem à investida da despatologização sobre a clínica e as suas classificações. O conceito acabou indo com a água do banho quando a homossexualidade foi retirada do DSM, em 1987, seguida pouco depois pela sua substituição pelas chamadas “parafilias” e “transtornos da preferência sexual” no DSM V.
A ideia de estrutura, por mais mal concebida que fosse neste caso, manifestava ainda, diga-se de passagem, uma reminiscência de um debate fecundo, o da liberdade, em uma disciplina devastada por sua adesão inquestionável à tese do determinismo organicista. Testemunha do debate do passado, esse manual poderia ainda afirmar, a propósito do DSM: “Nem acorrentada a reflexos incondicionais ou condicionados, nem absolutamente livre, a pessoa humana constrói a sua autonomia relativa por meio da sua organização.”(2) A célebre concepção de doença mental, de Henri Ey, como uma “patologia da liberdade” continua intacta, na definição atual da adicção, de Goodman, comumente aceita (3) , que comporta “a impossibilidade de resistir aos impulsos” e “a sensação de perda de controle”, apesar de “tentativas repetidas” de controle e resistência. Esta noção de perda de liberdade permitiu formular, por exemplo, que o alcoolismo era “a perda da liberdade de se abster.”(4) Mas a questão torna-se mais complexa quando se constata, com Marc Valleur, que “recuperar a liberdade de se abster pode implicar em renunciar à liberdade de consumir.”(5) Então, onde está a liberdade?
Alienados e insensatos
Na história da loucura, a palavra ‘alienado’ surgiu por volta de 1265, sucedendo a ‘insensato’, que apareceu em 1406. Do latim alienus, derivado de alius (outro), significa “pertencente a outro, estranho”. O alienado é aquele que é estranho a si próprio. À proporção que a nossa visão sobre o louco muda, muda também o termo utilizado para o nomear. Mas essa visão estava ligada a um movimento progressivo de confinamento que começou com a urbanização no século XVI. Assim, a quantidade de insensatos aumentou muito gradualmente até atingir vinte por cento da população encarcerada, no final do Antigo Regime. Mas não foi a rapidez do édito, de 1656, estudado por Foucault, que foi determinante. Houve muitos outros antes e depois dele, em toda a França (vinte éditos reais e decisões dos parlamentos, segundo Postel e Quetel). (6)
Assim, com Pinel e Esquirol, no século XIX, passou-se de ‘insensato’ a ‘alienado’. Mas, se o homem que era chamado de insensato, no Antigo Regime, se tornou alienado, na República, foi também porque queria-se que ele fosse livre como todo mundo, a partir de então. De alienado levado à libertação pelo psiquiatra – que primeiro libertava a si próprio (7) – a caridade é uma virtude… – hoje é também um adicto, na maioria das vezes, o que significa que o seu corpo está alienado. A quê? No direito romano, explica Jean-Yves Guillaumin, “a própria pessoa do devedor era cedida ao credor” (…) Este ‘escravo por dívida’, o addictus, está muito presente na literatura latina, desde a comédia de Plauto (As Bacantes, c. 1205).”(8) O adicto é submetido a uma atividade compulsiva, a uma substância. Se não está alienado ao Outro, está alienado ao objeto que tem no bolso, o gadget. O alienado, tal como o adicto, que são quase sinônimos, são os mártires de uma alienação que resiste a todo o idealismo de libertação.
Liberdade não encontrada
Sabe-se que Lacan, em 1946, se opôs firmemente a Henri Ey, à causalidade orgânica, e suas consequências em termos de liberdade: “Longe, pois, de a loucura ser o fato contingente das fragilidades do organismo, ela é a virtualidade permanente de uma falha aberta na sua essência”, não “um insulto” à liberdade, como afirmava Ey, mas “a sua mais fiel companheira” e “um limite.”(9) Inversamente, não há liberdade para se tornar livre, uma vez que “não fica louco quem quer”. Lacan convoca, novamente, a este debate em seu “Alocução sobre as psicoses da criança”, vinte anos mais tarde, argumentando que a aspiração à liberdade conduz a impasses, particularmente nas instituições, já que “no coletivo, o psicótico apresenta-se essencialmente como o signo, um signo de impasse, daquilo que legitima a referência à liberdade.”(10)
Haverá, então, algo como a liberdade? No final do seu percurso, Lacan concluiu com: ” Nunca falo de liberdade”, antes de afirmar, alguns anos mais tarde, que “só se é responsável na medida do seu saber-fazer.”(11) Podemos ainda falar de liberdade?
Em algumas das tentativas de definição, a liberdade indica o horizonte ideal de uma ausência de constrangimento, de dependência, em uma autonomia da vontade. Sem esperar que a psicanálise descentre a sua definição de liberdade (“o Eu não é senhor em sua própria casa”, como disse Freud), o determinismo compete com o livre-arbítrio na filosofia, que se desdobra até em seus efeitos políticos, em que esta oposição floresce no paradoxo de Saint Just: “nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade.”
No seu retorno a Freud, Lacan voltou a centralizar a psicanálise sobre a causalidade simbólica, condicionando os efeitos de sentido ao que ele pretende tornar a mola mestra da ação analítica, na interpretação. Deduz-se daí uma possibilidade de libertação, da ordem do possível. Mas, apesar da sua tentativa de significantizar a pulsão, o retorno a Freud encontra a pulsão de morte em ação no trauma e na reação terapêutica negativa, inicialmente atribuída à inércia imaginária (12). “O que é esta dessubjetivação, em psicanálise, pergunta Jacques-Alain Miller? Ora, ela se liga não a esse ser-para-a-morte, mas a esse ser-para-o-gozo, que Freud chamou de pulsão. E a pulsão – para usar um termo emprestado de Spinoza – é o cognatus freudiano. É o esforço de perseverar, no ser, como vontade não subjetiva de gozo. Este ser-para-o-gozo não é simples. Em primeiro lugar, porque, em Freud, se liga ao ser-para-a-morte sob o nome de pulsão de morte. Mas é também porque esse ser-para-o-gozo começou a ser excluído, por Lacan, da função da fala e do campo da linguagem.”(13) A partir de então, o gozo elevar-se-á à dimensão de um absoluto (14), termo que “tem sempre a ver com o impossível.”(15) Impossível como a liberdade. Se ela não existe, é porque é da ordem de um real.
Tratamento de substituição
Tal como aconteceu com o enfrentamento das toxicomanias, que passou do ideal da abstinência para a pragmática da redução de danos, a psicanálise deslocará o ideal terapêutico para o saber-fazer-aí com o sintoma. Isto significa ter em conta o impossível, ou aquilo a que Lacan chamou o real.
Se, inicialmente, Freud observou efeitos terapêuticos rápidos, uma vez inventado, o método vai versar sobre o impossível. O “declínio da interpretação”, observado por Serge Cottet, na prática, e pelo próprio Freud, em Para além do princípio do prazer (16), virá a sancionar o advento do real na civilização, à proporção de seu desencadeamento. Seria necessário, portanto, interrogar-nos: a que estamos assujeitados?
A tese do auto-tratamento dos adictos consta dos critérios de Goodman, na medida que “o comportamento, que pode funcionar tanto para produzir prazer como para aliviar um mal-estar interno, é utilizado de uma forma caracterizada pelo fracasso repetido em controlar esse comportamento (impotência) e pela persistência desse comportamento, apesar de consequências negativas significativas (perda de controle)” (17). O fato da adictologia levar isto em conta é uma resposta pragmática ao fracasso das políticas repressivas, cujos efeitos deletérios se equipararam aos da própria droga, como observa Éric Laurent: “O fracasso da guerra – War on drugs – é reconhecido por todos. Ao mesmo tempo, todos veem que a legalização desenfreada também produziria um “Empuxo-à-morte”, tão grande quanto a proibição. São as duas faces do supereu. O gozo desenfreado e a tolerância zero produzem duas faces do mesmo apelo à morte. Este apelo à morte se verifica, se encarna particularmente bem na droga, que vai junto com o tráfico de armas, que vai junto com a morte. Para se ver a ligação entre a droga e a morte, basta olhar para o Cartel Zeta, no México, as abominações cometidas no controle das zonas de droga, que ultrapassam até os crimes racistas. O horror da pulsão de morte revelado é completamente inimaginável (18).
Se a psicanálise, em alguns lugares, ficou para trás quanto a este real, na sua abordagem das toxicomanias (19), foi devido ao mal-entendido do real. Considerando as adicções, o primeiro tratamento de substituição é a ação direta do adicto sobre o gozo do corpo próprio, o seu Outro enigmático insuportável. A administração de drogas menos tóxicas ou das enquadradas no Discurso do Mestre levam em conta o impossível em questão. Conceber esta prática como uma capitulação e exigir que o sujeito entre primeiro num processo psicoterapêutico, era uma conceção antiga da prevalência do simbólico sobre o real, pois acontece exatamente o contrário, uma vez que a entrada no dispositivo médico produz um primeiro benefício para a identidade de dejeto que caracteriza o adicto. Seguem-se os efeitos da fala. Assim, não é a droga que faz o toxicômano calar, é o silêncio que o faz consumir.
Se a interpretação psicanalítica parece sem objeto e sem efeito na toxicomania e nas adicções, este é um modelo para a psicanálise: se a fala é o efeito do real e não o contrário, então deduz-se o lugar de um discurso que não seria do semblante. O ato ocupa nele o único lugar possível e deve, na maior parte das vezes, seguir o caminho do Discurso do Mestre para chegar lá. É esta a razão de ser das instituições de cuidados e, nomeadamente, em virtude da privação de liberdade que asseguram.
Tradução: Anna Rogéria N. de Oliveira (EBP/AMP)
Primeira revisão: Juliana Bressanelli Lóra
Revisão final: Bartyra Ribeiro de Castro (EBP/AMP)
1 Ey, Bernard, Brisset, Manuel de Psychiatrie, sexta edição, revista e corrigida, Elsevier, Masson, 1989, p. 397.
2 Ibid, p. 7.
3 Goodman A., “Addiction: definition and implications“, British Journal of Addiction (1990) 85, 1403-1408.
4 A expressão foi cunhada por Pierre Fouquet, fundador da Sociedade Francesa de Alcoolismo e autor, com Jean Clavreul, de “Lettres aux alcooliques” (“Cartas aos alcoólicos”). Ver Moins P., “Alcool et nouvelles cliniques? De l’apsychognosie de Fouquet au binge drinking comme conduite à risque“, La revue lacanienne, 2010/2 (n° 7), p. 53.
5 Valleur M., “Les modèles psychologiques de compréhension des addictions“, in Reynaud M., Tratado de adictologia, Flammarion, 2006, p. 60.
6 Postel J., Quetel C., Nouvelle histoire de la psychiatrie, Dunod, Paris, 1994.
7 “O verdadeiro sentido da antipsiquiatria”, dizia Lacan em 1971, “é o da libertação do psiquiatra” em Je parle aux murs, Seuil, 2011, p. 14.
8 Guillaumin J.-Y., “Addiction, addictus et addiction“, Dépendances, n.º 51, p. 24. Na Internet: https:
9 Lacan J., “Formulações sobre a causalidade psíquica”, in: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1946/ 1966.
10 Lacan J., “Alocução sobre as psicoses das crianças”, In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1967/2003.
11 Lacan J. “O Seminário. Livro 23: o sinthoma”. (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
12 Miller J.-A. “la fuite du sens“, Cours du département de psychanalyse de l’Université Paris VIII, 22.11.95, inédito.
13 Miller J.-A., Ibid.
14 Miller J.-A., “Une lecture du Séminaire D’un Autre à l’autre“, La Cause du désir, n° 64, outubro de 2006, p. 145.
- Miller J.-A., “L’orientation lacanienne. L’Un tout seul“, conferência proferida no departamento de psicanálise da Universidade de Paris 8, 18 de maio de 2011, inédito.
16 Vinciguerra R.-P., “Freud et le désir du psychanalyste de Serge Cottet“, La Cause freudienne, n.º 98, 2018, p. 211.
17 Goodman A., op. cit.
18 “Le traitement des choix forcés de la pulsion“, Entrevista com Éric Laurent em 24/04/2012, Lacan Quotidien, nº 204, 10.05.12, disponível online.
19 Ver Déglon J.-J., “Comment les théories psychanalytiques ont bloqué le traitement efficace des toxicomanes et contribué à la mort de milliers d’individus“, in Pleux D., Cottraux J., Borch-Jacobsen M., Le livre noir de la psychanalyse, Meyer, 2005, p. 616-637.