Corpo M-e-m-ó-r-i-a. Essa foi a proposição temática das V Jornadas da SLO. A partir do que se estabeleceu pelo Argumento, derivou-se então os quatro pontos cardeais, ou seja, os eixos temáticos que farão função bussolar na construção, recebimento e encaminhamento dos trabalhos que farão a composição teórica, clínica e política dessas Jornadas.
Portanto, as produções devem se orientar e contemplar um dos quatro portais abaixo definidos:
- A prática clínica na psicanálise
- Arte e psicanálise
- Neurociência e psicanálise
- Política e psicanálise
A partir do próximo Boletim, no MNEMIS UM, todos poderão ter acesso aos detalhes e perspectivas teóricas de cada eixo.
Prática Clínica na Psicanálise
Tânia Regina (EBP/AMP) & Ordália Junqueira (EBP/AMP)
Como se apresenta em análise o real inefável, o fora do discurso?
E as sensações corporais fora de sentido, fora destas lembranças de que se trata?
Um real do corpo? Que corpo?
E a memória, estaria ligada à repetição significante ou à imagem? Os traços de memória seriam da ordem simbólica, da cena imaginária, ou do real?
Marie-Hélène Brousse[1] fala de uma memória arraigada no corpo. Sensações que deixam traços sem palavras, escapam, portanto, à possibilidade de recordação. Uma memória contrária à recordação, um real inscrito no corpo vivo, que não é da ordem do sentido. Com a recordação falamos daquilo que foi enlaçado na cadeia significante.
Como o que é posto em palavras e não é da ordem do sentido, mas sim da imagem, pode surgir na prática clínica psicanalítica?
O Sem. 19 é uma orientação. Lacan (1972)[2] ensina: “O primeiro passo da experiência é introduzir nela o Um … Nós o fazemos dar o passo de entrada … Pois então, há Um”.[3] Assim, a análise se inicia no Um-sozinho, transcorre até o seu final no Um-sozinho; não sem o parceiro-analista!
Miller (2007)[4] traz a pulsão que ainda é um acordo entre significante e corpo, a qual pode ser evocada como ressonância. Mas o fato clínico maior que Lacan trabalha e põe em evidência em seu ultimíssimo ensino é a inibição de imaginar.[5] – Seu patema como resposta do real, considerando que a inibição advém do sujeito se deparar com o real. Assim, o fato clínico maior, segundo Miller (2007), é a hiância entre o imaginário e o real, enquanto se trata de recorrer ao imaginário para fazer uma ideia do real.
Algumas chaves de leitura para o tema das V Jornadas-SLO. Fica o convite à escrita. Vinhetas Clínicas a partir de sua prática. Interessa-nos extrair dos Casos Clínicos questões norteando a pesquisa do corpo, dos traços de memória, do Um, como por exemplo:
Como o analista tem respondido a fala analisante que se reduz, muitas vezes, a uma simples conjunção do Um e do corpo, uma fala que não está ligada a um saber, mas a uma satisfação “que não quer dizer nada a ninguém?”
Avante!
[1] BROUSSE, M-H. Las memorias y el olvido huellas y marcas. In: Enlaces, n. 27, p. 14.
[2] LACAN, J (1972). O Seminário … ou pior. Livro 19. RJ: JZE, 2012.
[3] LACAN, J (1972). No campo Uniano-aula IX., Op. Cit., p. 123.
[4] MILLER, J-A (2007). El ultimíssimo Lacan. Los cursos… BsAs: Paidós, 2014.
[5] MILLER, J-A (2007)., p. 258.
Psicanálise e Arte
Alberto Murta (AME EBP/AMP)
Logo no início do capítulo XVI do livro 19 intitulado: …ou pior, Lacan nos adverte de um certo logro, escamoteio, presente na produção de uma obra de arte. A criação artística não dá conta do número Um comandando o brotamento de uma obra. Por quê? Para ele, o produto de um artista esquece a emergência desse Um? Tentando acompanhar a orientação proposta por Lacan, será que a manifestação artística é regida pelos imperativos atualizados pelo discurso do mestre? Ou mesmo, a produção de um artista faz valer uma certa mudança de posição em relação ao S1?
Nesse contexto sou enviado ao eixo temático das V Jornadas: Arte e Psicanálise. E, por conseguinte, uma grande indagação se assanha na conexão Corpo e Memória quando caminhamos no campo da produção do artista e que foi operacionalizada num certo momento do ensino de Lacan. Acrescento que Lacan, sempre esteve preocupado com as manifestações artísticas, chegando mesmo a se interrogar se não tem uma incidência do Um na criação artística. Será que a emergência de uma produção artística provém do Um? Na nossa contemporaneidade não é fácil para o artista se desvencilhar do comando. Ao mando de quem, brota uma manifestação artística? Não se desvencilhando da ordenação do S1, é possível promover o surgimento desses S1?
Insisto ainda na mesma questão, qual é a incidência do Um quando o artista cria a sua obra? Estamos convictos que não podemos nos esconder face a esta incidência do Um no âmbito da produção de uma determinada obra de arte. Eis o desafio ético quando o ensino de Lacan avança: desvalorizar o buraco deixado pelo simbólico e, elevar este registro simbólico ao semblante. Queremos compartilhar e, por conseguinte, ampliar uma conversa com as possíveis apresentações dos trabalhos que serão endereçados a comissão científica. Sob essas condições sinalizadas logo acima, qual é a função do discurso psicanalítico não só como laço social mais como freio do gozo?
Psicanálise e Política
Rosangela Ribeiro (EBP/AMP) & Carla Serles (EBP/AMP)
A proposição “o inconsciente é a política”[6] instaurou-se como uma das bússolas à prática do analista de orientação lacaniana, em decorrência de ser necessário ultrapassar a ideia de solipsismo do inconsciente, e a consequente prescrição do analista “neutro”, ou seja, aquele indiferente às transmutações ocorridas no âmbito civilizatório. Em outras palavras, é premente que um psicanalista se oriente “politicamente” na época do Outro que não existe.
Nesse ensejo, optou-se por privilegiar duas vertentes de leitura delineadas a partir da distinção empreendida por Marie-Helene Brousse a respeito da recordação e da memória, sendo que a primeira concerne, mais estritamente, ao inconsciente transferencial e a segunda ao inconsciente real.
Desse modo, a recordação é consoante ao inconsciente como discurso do Outro, referido à estrutura linguageira, o que, necessariamente, implica que se leve em conta a natureza sistêmica e histórica da linguagem. “Existe, portanto, um historicismo da língua, ela traz em si a história e os traços fundamentais da civilização”.[7]
De que dimensão da política estamos falando quando circunscrevemos essa posição do psicanalista?
Retomando à diferenciação, a memória tem afinidades com o choque de lalíngua sobre o corpo; produz traços, vestígios, sulca o corpo, “sensações corporais, fora do sentido, fora da recordação”.[8] Nesse sentido, não há a marcação temporal, a memória se insinua como um lugar no corpo vivo.
Miller realizará uma renovação da formulação sobre o inconsciente ser a política a partir de uma afirmação de Lacan de que O Outro é o corpo.
Segundo Eric Laurent a identificação, mecanismo político por excelência, pode ser relida a partir da inscrição sobre o corpo, a partir do acontecimento de corpo.
De que identificação se trata quando se toma como paradigma o corpo falante que não confere nenhum ser, mas que vibra pelos efeitos de lalíngua?
Como pensar a política a partir do corpo como Outro? Corpo esse cujo reiterado escape, revela a condição de pertencimento sempre instável e provisória.
Em qualquer uma das perspectivas, o analista deve estar orientado na subjetividade de sua época, o que exige dele um vívido interesse pela civilização e seus inerentes efeitos de mal-estar, bem como pela política, ainda que seja pelas vias de seu poder e/ou de suas características de horror.
Poder-se-ia pensar em uma política do sintoma naquilo que ele se conjuga como desarranjo, disfunção e/ou refração às exigências do mestre contemporâneo e, ainda em uma política do sinthoma que leve em consideração o fator contingencial que irrompe no real.
Esses são alguns dos inúmeros aspectos passíveis de serem abordados no tocante a esse eixo. Esperamos acolher trabalhos que nos permitam avançar nessa discussão.
[6] Lacan, Jacques. A lógica da fantasia. Seminário inédito.
[7] BROUSSE, M-H. O inconsciente é a política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018, p.27.
Psicanálise e Neurociências
Fábio Paes Barreto (EBP/AMP)
Inconsciente e cérebro, nada em comum. A assertiva embute uma provocação. A orientação lacaniana considera uma distinção epistêmica radical entre as neurociências e a psicanálise, cérebro e inconsciente nada tem a ver um com o outro. Por outro lado, Lacan sempre situou a psicanálise mais do lado da ciência do que da religião. No Seminário 11, ele acrescenta que “se a psicanálise deve se constituir como ciência do inconsciente, convém partir de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem”.[9] No aggiornamento da série neurociências-psicanálise-inconsciente real, a clínica do sinthoma[10] e do Um sozinho[11] advém como um refinamento maior da prática da psicanálise, em nossos dias.
Nos tempos da clínica continuísta, como se atualiza a direção do tratamento para os sintomas contemporâneos e que não querem falar, de ampla profusão no século 21?
Para além das medicações neurolépticas que apaziguam a invasão do gozo do Outro na psicose, como o analista pode secretariar aquele que padece da carência do Nome-do-Pai para bricolar uma nomeação possível[12] e inventar uma solução de suplência para a loucura?
Como um corpo autista de topologia tórica entra em jogo na cura analítica? Como furar e revirar o toro para a circulação do gozo e dos objetos? Como fazer face às terapias que apostam na mecânica de uma aprendizagem via treinamento/repetição e que redundam no apagamento da subjetividade do falasser autista[13]?
São algumas questões candentes do eixo temático “Psicanálise e Neurociências” com as quais convidamos os colegas para a produção de trabalhos para as V Jornadas da EBP-SLO. Mãos à obra!