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Sexuação e mística

Por Claudia Murta (EBP/AMP)
O êxtase de Santa Teresa, Benini, 1652

Jacques Lacan em seu “Seminário XX” propõe dois tipos de gozo: um gozo fálico e um gozo feminino. Para ele, o gozo fálico, o único ao qual temos acesso, existe porque habitamos o campo da linguagem. Sendo assim, o gozo fálico pode estar em qualquer atividade, pois mantém o princípio de prazer. Já o gozo feminino não entra no campo da linguagem e, dessa forma, não tem representação possível. O seu acesso passa a ser possível pela via da experiência, podendo ser percebido através do êxtase. No texto do “Seminário XX”, Lacan indica a literatura dos místicos como fonte de acesso para o entendimento de sua proposição sobre o gozo feminino. O êxtase místico oferece, para Lacan, a mesma disposição do gozo feminino.

A impossibilidade de relação sexual ou relação entre os sexos manifesta-se de tal modo que, para um lado, o masculino, a estruturação da linguagem se fazem possíveis pela via do significante; enquanto que, para o outro lado, o feminino, não tem uma estruturação possível para uma linguagem propriamente feminina, fato este que atesta os limites do próprio campo da linguagem[1] e, assim sendo, do campo do Outro.

Contudo, Lacan não propõe uma separação fixa entre os dois lados da sexuação, pois, se assim fosse, o feminino estaria completamente tolhido da possibilidade de entrada no campo da linguagem e, desse modo, reduzido ao silêncio absoluto. Para Lacan, a mulher que não existe pode ter acesso ao significante fálico masculino, pois dentro da construção lacaniana, a natureza do feminino é de proporcionar uma incompletude ao campo do Outro, da linguagem. Assim, a mulher pode ou não utilizar o significante; o que é diferente de estar completamente fora do discurso.

A partir desse esclarecimento, pode-se perceber melhor a ligação entre os dois lados da sexuação. O lado homem não é o lado onde tudo existe, onde o discurso se articula perfeitamente sem falhas[2]; enquanto o lado feminino não é exatamente o lado onde nada existe e, por conseguinte, não há possibilidade de discurso. Os dois lados não podem ser pensados em separado. O laço entre os dois lados disjuntos da sexuação é apontado por Lacan como sendo da ordem da ex-sistência. Segundo Jacques-Alain Miller, ao comentar o termo utilizado por Lacan, a expressão ex-sistência é sempre correlativa a uma saída para fora de [3]. Se, de um lado não podemos falar de um Outro completo, garantidor do discurso; do outro lado não podemos falar de uma ausência absoluta do Outro. Contudo, algumas manifestações discursivas ou pré-discursivas se situam mais de um lado ou do outro; desse modo, alguns discursos podem fazer mais ilusão de sentido do que outros, tornando-se mais ou menos aceitáveis dependendo do fato de manifestarem, mais ou menos, algo da ordem do feminino.

No êxtase, o modo de gozo se manifesta enquanto desaparecimento do corpo próprio. A sensação de desaparecimento do corpo no êxtase é relatada nos poemas místicos, tais como “Vivo sem viver em mim” de santa Tereza D’Ávila, do qual citamos um fragmento:

Vivo já fora de mim,
depois que morro de amor,
porque vivo no Senhor,
que me quis só para si.
meu coração lhe ofereci
pondo nele este dizer:
Que morro por não morrer.[4]

Os êxtases místicos são cantados através de poemas que, segundo os próprios místicos, não traduzem de modo algum a experiência vivida. Os místicos proclamam a inefabilidade da experiência. Apresentam a impossibilidade de expressá-la adequadamente e, por outro lado, estão sempre cantando ou falando, mesmo para dizer que sua experiência é indizível. Os místicos afirmam a inefabilidade da experiência até mesmo depois de terem-na dito. No prólogo do poema, “Oh chama de amor viva!”, são João da Cruz anuncia à destinatária dos versos:

alguma repugnância tenho tido, mui nobre e devota senhora, em declarar estas quatro canções que vossa mercê me pediu, porque, são de coisas tão interiores e espirituais, para as quais falta linguagem – porque o espiritual excede ao sentido – , com dificuldade se diz algo da substância; porque também, se fala mal das entranhas do espírito, se não é com o entranhável espírito[5] .

A linguagem não é suficiente para expressar a experiência de desapropriação do corpo vivida pelos místicos e nomeada por eles como união de amor da alma com Deus. No momento de união de amor mística, não há mais a vivência de corpo, sendo a alma tomada por Deus. A queixa dos místicos é que a poesia não traduz fielmente tal experiência. Pois, como anuncia são João da Cruz, falta linguagem que sustente essa experiência espiritual. A experiência mística não entra no campo da linguagem e, a causa dessa enfermidade da linguagem situa-se no fato, como aponta são João da Cruz, do espiritual exceder ao sentido. Ao fazer exceção ao sentido, a experiência mística escapa a qualquer referência, até mesmo corporal. Pois, na experiência mística, há uma desfalicização total que produz o arroubamento do corpo.

A desfalicização é proposta por santa Tereza D’Ávila como um caminho a ser seguido. Em meio a um século turbulento pelas reformas religiosas, descobertas de novos mundos e inquisições, santa Tereza D’Ávila viabiliza a reforma na Ordem das Carmelitas. Ela não quer que os mosteiros sejam submetidos à ordem masculina e dedica sua vida à luta pela reforma e fundação de conventos. Ela funda dezoito conventos na Espanha reformados e reconhecidos como Ordem das Carmelitas Descalças. A sua proposta para a reforma se baseia no despojamento de todos os laços materiais em busca de uma vida de recolhimento estabelecida na oração e na mortificação.

A marca dessa reforma inicia-se pela mudança de hábito. O passo inicial de santa Teresa foi mudar o hábito refinado das Carmelitas com o objetivo de livrar-se dos apegos corporais que denotam o falicismo que não cabia em sua proposta. O charme das botinas de couro calçadas pelas Carmelitas é liquidado pelas alpercatas de cânhamo que expõem à rudeza do contato com a natureza assumidas por Teresa em sua reforma. As Carmelitas são descalças de qualquer artifício e qualquer proteção contra a vida dura e de ínfima subsistência que ela pretende levar e guiar – eis a nomeação para esse modo de condução de gozo. Quando Lacan, no texto do “Aturdido”, nomeia o significante como calçador, ele observa que as mulheres podem se servir do mesmo, utilizando-o com certa liberdade. Com isso, queremos dizer que Lacan nos reenvia a certas referências que são as Descalças. É a ordem das Descalças do falo, do corpo, de tudo.

E, como o próprio Lacan aponta em seu “Seminário XX”, não se esqueçam de colocar nas indicações de leituras místicas os “Escritos”, de Jacques Lacan, que, a seu ver são da mesma ordem.


[1] Como se a mulher tivesse oferecido os limites ao sonho de linguagem universal anunciado por G. Frege em sua Begriffsshrift e partilhado com toda a modernidade.
[2] Os atos falhos foram apontados por Freud como manifestações do inconsciente.
[3] MILLER, J.A. “A ex-sistência”. In. Opção lacaniana, Eólia, São Paulo,  n. 33, jun.  2002, p. 10.
[4] D’AVILA, T. “Vivo sem viver em mim”. In: Seta de Fogo. Trad. José Bento, Lisboa: Assírio e Alvin, 1989, p. 5.
[5] DE LA CRUZ, J. Obras Completas. 5ª ed. Madrid: Espiritualidad, 1993, p. 784.
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