15 de setembro de 2022
Revolucionários
Por Renata Tavares Imperial e Simone Vieira
Revolucionários, assim podemos nomear Freud e Picasso. Ambos revolucionaram a forma como se lidava com questões caras ao humano.
O que implica revolucionar? Segundo a definição do dicionário, revolucionar significa “Provocar mudança radical em algo; subverter; transformar”. Provocar uma revolução, ou seja, “ato ou efeito de revolucionar(-se), de realizar mudanças profundas ou radicais”[1].
Dito de outra forma, de uma maneira muito própria e cada um na sua área, Freud e Picasso desnudaram questões sobre a sexualidade humana e sobre a arte respectivamente. Ambos apontaram para um real em jogo nas suas épocas, tendo como inspiração AS MULHERES. A produção e a biografia de Freud e Picasso são extensas, bem como suas contribuições, e ainda hoje seguem tendo uma enorme relevância na cultura.
A clínica psicanalítica surge da escuta que Freud fez das mulheres. Dos seus relatos, ele constrói uma das suas teorias mais importantes e revolucionárias: a sexualidade infantil. Freud amplia a concepção de sexualidade e sustenta que esta atravessa o humano desde a mais tenra idade, sem necessidade de uma interferência externa, do adulto, por exemplo, para que a criança vivencie os efeitos da sexualidade em seu corpo. Efeitos estes visíveis à observação das crianças e constatados na experiência clínica “pelos investigadores que tenham paciência e habilidade técnica suficientes para reconduzir a análise até os primeiros anos da infância do paciente” (FREUD,1920, p.126).
Contemporâneo ao texto de Freud os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), pinçamos de Picasso seu famoso quadro Les demoiselles d’Avignon (1907). Considerada uma das obras responsáveis por revolucionar a história da arte. Mesmo se a tomarmos somente como um gesto de Picasso, esse gesto deve ser lido como genuinamente um gesto de revolta, formando a base para o processo revolucionário do cubismo. Ela é o marco, portanto, do início dos experimentos com a linguagem cubista. Com uma dureza Expressionista, Picasso não propõe uma nova estética, mas uma contestação ao que era produzido enquanto arte até então. A arte, “para Picasso, é uma intervenção resoluta na realidade histórica” (ARGAN, 1992, p.424), e o que vemos em sua obra é um posicionamento político contra a moral de uma burguesia abastada. Literalmente, ele estilhaça as figuras, o fundo, suas relações e as deforma, sendo Les demoiselles d’Avignon uma excelente representação disso. Esses elementos nos dão parâmetros para compreendermos por que essa obra foi tão questionada, até mesmo pelos amigos mais próximos do pintor. O que causou tanto rechaço a Les demoiselles d’Avignon? A tela expõe mulheres nuas, numa postura totalmente diferente da nudez de mulheres até então, como por exemplo a tela As Mulheres no Banho de Cézanne, onde as mulheres que se banham portam um lirismo preconizado no gosto da época.
Em Les demoiselles d’Avignon ocorre uma mudança radical. À esquerda, vemos corpos rígidos de mulheres, à direita, elas tomam a face de terríveis máscaras. Nesse período, Picasso se aproxima da arte africana, e para ele, “o problema histórico não era a escultura negra, e sim a crise da cultura europeia, forçada a procurar novos modelos de valores fora do seu próprio campo” (ARGAN, p.426). Sendo uma das composições mais famosas de Picasso, podemos considerar Les demoiselles d’Avignon um ato político ao escolher retratar mulheres nuas de frente, nos encarando, numa postura desafiadora? Elas incomodaram a sociedade, os colegas e os críticos de Picasso, uma vez que ele fez desmoronar toda a tradição pictórica ocidental, reinventando a maneira de pintar, ou seja, uma outra maneira de retratar e de questionar a realidade
Miller (2013) destaca o significante revolução, atribuído à obra de Picasso, em especial ao quadro Les demoiselles d’Avignon, que no momento que foi apresentado ao público não foi uma “transgressão celebrada”. Em seus termos: em se tratando de “uma revolução desta ordem, sem dúvida, requer um tempo de latência para percebê-la” (p.198). Tempo para elaborar os efeitos, não somente para o público e os pares, mas também para o próprio autor. Quais os efeitos deste quadro para Picasso, que o manteve por meses deixado de lado em seu ateliê? A mesma pergunta vale para Freud, quais os efeitos de seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, na medida em que foi um dos textos que Freud mais fez alterações ao longo de vinte anos após a sua primeira publicação?
O significante revolucionário implica no risco da incompreensão. No campo da psicanálise, interessa-nos manter o lugar do incompreensível, do que escapa à compreensão. Um de seus nomes privilegiados é real. A clínica psicanalítica, orientada pelo último ensino de Lacan, visa “buscar o real em tudo”, isto é, “buscar o real, tentar passar sob o sentido, tentar prescindir das construções” (Miller, 2013, p.135).
As obras artísticas servem de grande inspiração aos psicanalistas para continuarem a dar lugar ao que não se compreende.