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O sexo e a psicose: amor e gozo

Fonte: pizabay
Fonte: pizabay
Por Juliana Bressanelli Lóra 

O afamado axioma lacaniano “Não há relação sexual”, apresenta justamente esta falta de uma contiguidade na relação entre os sexos, partindo, a princípio, da diferença macho/fêmea, homem/mulher, feminino/masculino, ou seus equivalentes. Isto implica dizer, citando Miquel Bassols, que “não há nada no ser humano que assegure a existência de uma diferença entre os sexos para estabelecer, depois, uma relação, normativa ou não, entre eles” (BASSOLS, M., 2021). Quando se trata da sexualidade e dos diferentes modos de gozo, tomados um a um, a tentativa de identificação sexual do ser humano fracassa, já que, no inconsciente, a diferença sexual não existe.

Ainda assim, o ser humano encontra-se sempre referenciado a uma língua, como um sistema simbólico de diferenças. O ser falante se situa a partir de uma ausência, ou seja, à condição de que ele reconheça a falta estrutural inerente à linguagem, de forma que a sexuação humana está de alguma forma referida à norma fálica, mesmo que seja para não se servir dela.

O que se constata (e teoriza) na clínica lacaniana das psicoses é que o psicótico se situa no mundo do falante a partir do rechaço, da foraclusão desta falta. Na psicose, não há regulação pela norma fálica e isso aponta consequências clínicas substanciais. Quando o psicótico é convocado a responder a partir de seu lugar como sexuado, frequentemente um embaraço se manifesta, que por vezes dá lugar ao delírio. Como pensar, assim, a constituição da vida sexual nas psicoses? Como o sujeito psicótico se situa frente à diferença sexual? Qual a sua posição na partilha entre os sexos? De forma mais específica, quais os ordenamentos possíveis para o psicótico frente ao amor e ao gozo?

A começar pelo amor, ele está implicado nas parcerias, nas transferências. Frente aos impasses estabelecidos pelo encontro com o Outro, enquanto a resposta do neurótico é tentar circunscrevê-lo simbolicamente, desdobrá-lo, interpretar esse enigma gerado por esse encontro com o signo do amor, signo que demanda incessantemente uma interpretação (LACAN, 1982), na psicose essa resposta pode dar-se pela via da erotomania.

A clássica descrição da síndrome proposta por Clérambault, na década de 1920, objeto da tese de doutorado de Lacan (1934), apontava para a relação delirante do psicótico com o amor. O texto de Clérambault nos traz uma contribuição teórica psiquiátrica a respeito da erotomania, compreendida juntamente com os delírios de reivindicação e de ciúme dentro do grupo dos estados passionais mórbidos. As psicoses passionais seriam paixões mórbidas que se caracterizariam por uma perturbação fundamental que produziria a cristalização delirante. Na erotomania, o Postulado Fundamental – “o outro me ama” – é o elemento que une todos os outros e é aquele em torno do qual giram as interpretações delirantes. É o artifício essencial, por ser determinante de todos os raciocínios, atos e comportamentos. Funcionando como um núcleo estrutural do delírio, é a partir dele que toda a construção delirante a respeito de sua relação amorosa se dará. Ao mesmo tempo, é isto o que condiciona as atitudes do sujeito na direção de seu objeto de amor, onde perseguições e importunações são reações típicas. A interpretação dos fatos e acontecimentos que se dão ao seu redor é incessante, obedecendo à ideia de que o outro dirige a ele seu amor.

Lacan aponta que o signo do amor difere dos outros signos, pois demanda mais que uma interpretação. Ele tem uma demanda contínua por algo mais, um “mais-além”. Ele acena para outro signo num movimento incessante, mas que nunca encontra uma solução satisfatória.

O amor demanda o amor, indefinida e incessantemente, mais…ainda. “Mais…ainda”, segundo Lacan, no Seminário que leva esse título (LACAN, 1972-73), é o nome próprio dessa falha de onde, no Outro, parte a demanda de amor. Não há, no Outro, algo que responda a ela. O amor seria um signo ininterpretável, pois corresponde à tentativa de ignorar o fato de que não há unidade possível que aplaque a separação entre os sexos, não há nada que redima essa separação. Não há fórmula simbólica, no registro do significante, que possa dar conta desse encontro.

O amor visa o impossível da relação sexual, na tentativa de fazer um só, é a tensão para fazer Um. Como o objeto de desejo nos remete a uma impossibilidade — pois este diz respeito ao inalcançável, àquilo que está sempre além ou aquém da demanda —, o amor demonstra a sua insatisfação. Ele tenta ignorar essa possibilidade de estabelecer uma relação unívoca entre os dois sexos. O discurso analítico se sustenta justamente nesse pilar, já que o amor é o móvel de todo o processo da análise. É algo que a experiência analítica testemunha a todo o momento.

O sujeito psicótico dá à questão do amor uma solução outra, diferentemente da neurose, onde o amor é demanda de ser amado pelo Outro. O psicótico não ignora a existência dessa dimensão contingente, desse aspecto arbitrário do encontro. Ao contrário, ele dá a isso seu lugar no sistema simbólico. Contrariamente ao neurótico, ele não se esforça em construir um sistema explicativo que possa dar conta do que não existe. A partir da certeza enigmática em torno da qual se organiza o delírio na psicose, o sujeito tem uma verdade revelada através do Postulado ― como nos mostrava Clérambault em sua descrição da Síndrome Erotomaníaca ― a partir do qual vão se desenvolver todas as outras interpretações. Neste sentido, é interessante pensar nas consequências clínicas dessas diferentes posições que podem ser assumidas pelo sujeito frente à questão do amor, pois, se nos pautarmos clinicamente, podemos afirmar que é comum que o encontro amoroso provoque o desencadeamento da psicose.

A obra freudiana nos ofereceu vários direcionamentos para a associação inequívoca entre amor e ódio, nas suas obras sobre as pulsões (Pulsões e seus destinos, 1905), assim como aquelas sobre o amor e o amor de transferência (Observações sobre o amor transferencial, 1914-15). No trabalho sobre o caso clínico do Presidente Schreber (1911), ao desenvolver a teoria sobre o mecanismo de formação dos sintomas na paranoia, Freud mostra que, com frequência, o objeto de amor se torna o principal perseguidor do paranoico.

Schreber nos mostra a necessidade implicada nessa erotomania divina: é Deus quem o ama e que dele quer gozar, transformando-o em sua mulher e que, mais ainda, pode abandoná-lo sem mais nem menos, o que causava nele grande angústia. Por mais penosa que fosse essa relação, ela precisava ser mantida, já que sem isso, sem essa relação erótica e de diálogo, ele corria o risco de desaparecer. E assim, ele dava testemunho dessa conversa interior travada sem cessar.

Se nos referirmos ao paradigma da erotomania divina, no caso do Presidente Schreber, é possível perceber como, neste caso, a erotomania diz mais do gozo do Outro (Deus) que propriamente de uma questão com o amor. Neste caso, Schreber parece responder a isso, a partir da sua transformação em mulher. O empuxo-à-mulher, delírio de transformação de seu corpo em um corpo feminino, que se oferece à função da procriação com ninguém menos que Deus para a criação da nova humanidade. Na leitura da obra é possível perceber que aquilo que aparece como um pensamento fugaz antes do adoecimento, uma ideia aparentemente sem muita importância de “como seria prazeroso copular como uma mulher”, reaparece no desenvolvimento do delírio na forma de sua transformação. Modificação corporal vivenciada, experimentada corporalmente, com todas as características de uma experiência sensorial real. Neste caso, o empuxo-à-mulher parece ser a posição de gozo na qual o psicótico se situa para responder ao gozo mortífero do Outro. Ou ainda, gozo da ordem da volúpia, marcado pelas sensações corporais, como um gozo próprio para responder ao Outro (gozador ou não), levando em conta a sua dimensão autoerótica. Consentir com a sua transformação em mulher, não em uma mulher qualquer, mas A “Mulher de Deus”, provoca uma estabilização (ainda que precária) e funciona como uma suplência à falta de inscrição simbólica da diferença sexual.

O delírio de Schreber, de ser transformado em mulher, nos faz notar como as pulsões podem tomar rumos tortuosos na busca pela satisfação e sua versatilidade, no que diz respeito ao objeto sobre o qual se fixam. Quando nos referimos a Freud, além de sua descrição da Erotomania, a partir do caso Schreber, é essencialmente como esse autor nos aponta a contingência que é própria aos destinos das pulsões, como isso tem consequência na sexualidade humana e, no que diz respeito à forma como o homem vai em busca de seus objetos de amor, seus pares sexuais.

O amor toca a loucura em algum ponto[1]. Ele nos remete à parceira sintomática, que implica não apenas uma relação com o objeto, mas, essencialmente, uma relação com o gozo. A erotomania aponta para um amor impossível. O empuxo-à-mulher aponta para um gozo sem limites, por definição autoerótico, sem dúvida, da ordem de uma invenção.


Referências Bibliográficas:
BASSOLS, M. La diferencia de los sexos no existe en el inconsciente. Olivos: Grama Ediciones, 2021.
CLÉRAMBAULT, G. G. L’érotomanie. France: Dépôt Legal, 1993.
FREUD, S. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (1911). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XII.
_____. Observações sobre o amor transferencial (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III) (1915 [1914]). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XII.
_____. A história do movimento psicanalítico (1914). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XIV.
LACAN, J. O Seminário – livro 20: Mais, ainda (1972-1973). Tradução de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982.
MILLER, J.A. L´Amour dans les psychoses. França: Éditions du Seuil, 2004.

[1] MILLER, J.A. (Org.) L´amour dans les psychoses (2004).
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