skip to Main Content

O que significa fazer existir A Mulher que não existe na psicose (?)1

Fonte: pixabay
Fonte: pixabay
Por Antônio Teixeira (EBP/AMP)

Ao reler o título proposto para minha intervenção, em resposta ao amável convite que me foi feito pela Diretoria da Escola Brasileira de Psicanálise e pela comissão responsável pela organização desse evento, eu percebi, tardiamente, que faltou acrescentar um ponto de interrogação a seu final. É mais como questão do que como resposta que eu gostaria de conduzir essa discussão hoje à noite com vocês, com o intuito de interpelar o que significa fazer existir a mulher, na experiência da psicose, em sua aparente contradição com a proposição da inexistência da mulher, enunciada por Lacan no horizonte das fórmulas quânticas da sexuação.

Se digo isso, é por não ser raro, como vocês bem sabem, encontrarmos formulações lacanianas antinômicas cuja consideração nos conduz frequentemente a adotar, conforme sugere em vários momentos Jacques-Alain Miller, a ideia de um segundo Lacan contra um primeiro Lacan. Mas quando abordamos a coexistência da expressão “empuxo a ‘A mulher’ na psicose”, – tradução conceitual proposta por Lacan da Verweiblichung descrita por Freud, a respeito da transformação corporal delirante vivida pelo presidente Schreber – com o tema da inexistência de A Mulher (a se grafar com A barrado), notamos que elas são formuladas concomitantemente. Vocês a encontram reunidas tanto no escrito “O Aturdito” quanto no Seminário XX, ambos produzidos nesse profícuo ano de 1972. Por isso achei por bem interrogar como se articula essa noção de empuxo à mulher, na psicose, com o tema da inexistência da mulher desenvolvido no mesmo período.

Para abordar essa aparente antinomia, ocorreu-me pensar na diferença semântica entre o verbo impessoal “haver” e o verbo intransitivo “existir”. Podemos, efetivamente, dizer que há algo que não existe, quando afirmamos, por exemplo, que há uma jogada que não existe no jogo de xadrez: o movimento horizontal do bispo. Ao considerarmos, por outro lado, que o verbo existir deriva de ex-sistere, que etimologicamente significa “provir de”, podemos conceber essa ideia de proveniência em conformidade com a regra que define o lugar discursivo daquilo que há. Existir, nesse sentido, significa, como se diz em francês, “avoir lieu”, ter lugar num sistema ordenado de linguagem. Do mesmo modo que o espaço curvo não existia para a geometria euclidiana, por não dispor de um lugar de proveniência nesse sistema teórico, as formações do inconsciente não podiam existir para o pensamento fenomenológico que identificava a psique à consciência. Como se percebe, a existência normalmente se dá nos termos de uma regulação discursiva da linguagem sobre o “haver”: o “existir” seria, nesse sentido, um “haver” que poder “ter lugar” no universo do discurso.

Afirmar, portanto, como o faz Lacan, que A mulher não existe, significa dizer que há um significante, A mulher, que não pode ter lugar, por razões de estrutura, no universo do discurso, na medida em que não há, no lado feminino, o elemento de exceção sobre o qual o universo, em que se distribuem os lugares, poderia se constituir. A fim de esclarecer, então, o que vem a ser esse universo no qual o existir pode ou não ter lugar, vale retomar o modo pelo qual Lacan articula a dimensão do universal, na forma do “”∀x Φx”, a algo que dele se exclui, na forma de um x que não Φx, e ao mesmo tempo esclarecer por que razão o Universal depende, para se constituir, dessa ligação ao elemento de exceção como limite que o nega.

Devo confessar a vocês que demorei muito tempo para entender essa articulação do Universal ao elemento que o nega. Era uma articulação que eu aceitava, por provir de Lacan, mas sem captar a necessidade que a determinava internamente. Ao percorrer o ensino de Lacan, armado com essa pergunta, eu pude notar que a ligação do “para todo” com a exceção, formulada em 1972, já se anunciava em 10 anos antes, em 1962, em seu seminário ainda inédito sobre a Identificação. A diferença é que se em 1972 Lacan se vale da lógica proposicional de Frege, que se organiza em termos de função e argumento, em 1962 ele ainda se serve da lógica de Aristóteles que distribui seus elementos nos termos gramaticais de sujeito, cópula e predicado. De sorte que o universal, que em 72, se formula como “∀x Φx, ainda se escrevia, em 62, na proposição aristotélica como “Todo S é P”.

Para não me delongar muito, vou resumir uma discussão que tive ocasião de expor mais detalhadamente[2], dizendo que o interesse maior de Lacan, em relação a esse ponto, é o de subverter a leitura aristotélica clássica, ao contestar a ideia de um Universal previamente dado, do qual a proposição particular se encontra naturalmente subordinada[3]. O que normalmente aprendemos, nos manuais de lógica de predicados, é que da proposição universal afirmativa do tipo “todo homem é mortal” derivaria, naturalmente, aquela que enuncia que “algum homem é mortal”, assim como da Universal negativa “nenhum homem é divino” deriva “algum homem não é divino”. É nesse sentido que a particular se inscreve, no quadrado lógico, como subalterna ou subordinada em relação à universal, como se pode ler visualizar no quadrado lógico de Apuleio:

 

Todo S é P                                                      Todo S é não P

Algum S é P                                                 Algum S é não P

 

Para reverter essa leitura, Lacan se vale de um exemplo, aqui por nós ligeiramente modificado, que nos permite claramente ver que não há nada de tão natural assim nessa relação de subordinação[4]. Se tomarem o slogan “todo soldado deve morrer pela pátria”, proferido pelo chefe da tropa, vocês percebem que ele é admitido facilmente pelos soldados, que fazem no máximo bocejar ao escutá-lo. Mas no momento em que o comandante afirma que “algum soldado deve morrer pela pátria”, notamos na reação, agora de espanto e medo, que não se trata de uma derivação tão natural assim.

A ideia é que a proposição universal afirmativa – Todo soldado deve morrer pela pátria – é cômoda por ser da ordem do que Peirce propõe chamar de lexis, no sentido em que se trata da pura leitura, da mera constatação de um enunciado em que não se leva em conta o engajamento do sujeito[5]. Mas quando se trata de particular afirmativa – “algum soldado deve morrer pela pátria” –, percebemos que ela toca efetivamente no sujeito, na medida em que agora ele se vê exposto ao risco de sua própria existência. O essencial se encontra no fato, indicado por Peirce, de que a universal afirmativa não afirma necessariamente nada sobre nenhuma existência, se tomada por si só. A proposição universal “todo traço é vertical” é verdadeira mesmo que não exista nenhum traço, do mesmo modo que a proposição “todo lobisomem é mamífero” é válida, mesmo que não exista nenhum lobisomem. Sua comodidade, que se faz notar no bocejo dos soldados tropa, se deve ao fato de que ela diz respeito somente a um puro juízo de atribuição, mas não necessariamente ao juízo de existência, conforme se nota no quadrante 4, onde a universal afirmativa e a universal negativa comungam do setor vazio.

O que se percebe, então, no tremor produzido pela segunda sentença – “algum soldado deve morrer pela pátria” – é que a proposição particular se diferencia da universal por ser necessariamente existencial, por dizer respeito a algo que necessariamente existe na experiência concreta sujeito. Por isso Lacan nos indica que a proposição universal, para ter efetividade, necessita convocar algo que existe no nível concreto da particular e que ao mesmo tempo a nega, que se apresenta como contraditório a ela no nível da proposição particular negativa, para em seguida recusar que ela seja pertinente. Não basta enunciar “todo traço é vertical”. É preciso encontrar o traço que contradiz essa proposição, na experiência particular, e em seguida recusar sua pertinência, através não mais de uma pura lexis, de uma simples constatação, mas do que Pierce nomeia de fasis, termo que agora indica a violência de uma declaração performativa: “nada de traço que não seja vertical”[6].

Para que isso fique menos abstrato, ao tomarmos, a título de exemplo, o enunciado “todo analista é freudiano”, notamos que ele é verdadeiro mesmo que não exista nenhum analista. Porém, quando se entra no nível da existência concreta, quando queremos, digamos, fundar uma instituição psicanalítica, encontramos pessoas que se dizem analistas, dentre as quais alguém que se intitula como tal sem se dizer freudiano. Pode ser que haja alguém que se apresenta como analista, mas que se diga junguiano, adleriano, reichiano, pouco importa. Mas para que o universal de uma instituição tenha, então, efetividade concreta, é preciso que se afirme algo como “nada de analista que não seja freudiano”, numa declaração comparável àquele que se encontrava no frontispício da Academia de Platão: nada de filósofo que não seja geômetra. Os junguianos que sejam psicoterapeutas, conselheiros espirituais ou o que bem entenderem, mas “nada de analista que não seja freudiano”.

É nesses termos que sugeri pensar, em outro momento, na referência anteriormente citada, a fundação mítica da comunidade humana proposta por Freud, em Totem e Tabu. Diante da existência mítica de um pai primevo, dito gozador, não submetido à interdição do incesto, na forma de um x que não Φx, a sociedade dos filhos se engaja, através do seu assassinato, no universal declarativo da lei que se funda através de sua exclusão: nada de x que não Φx. O assassinato do pai primevo aqui representa a própria violência dessa declaração performativa – nada de x que não  Φx – sobre a qual se constrói o Universal “”∀x Φx” da interdição do incesto. É nesse sentido que o sujeito só tem lugar de existência, no Universal da comunidade marcado por essa interdição imposta pelo limite do gozo fálico, conforme a lei representada pelo pai morto como Nome do Pai.

Mas quando tomamos, distintamente, o lado feminino das fórmulas quânticas, notamos que aqui não existe a exceção sobre cuja exclusão se constitui o Universo. É importante enfatizar que dizer “notamos que não existe x que não Φx”, no lado feminino, é qualitativamente distinto de afirmar “nada de x que não Fx” sobre o qual se erige o Universal no lado masculino. No primeiro caso, temos o que Peirce chama de lexis, uma pura leitura, ou constatação, no segundo caso, temos o que Peirce agora chama de fasis, para se referir ao engajamento de uma declaração performativa. Queremos, com isso, dizer que a lei simbólica, que funda o Universo fálico, é fruto de uma declaração, de um engajamento em relação ao que se apresenta como contraditório a ela. É justamente pelo fato de que a exceção não se apresenta, no lado feminino, que o Universo ali não pode se constituir na forma da declaração da lei do discurso que deve valer “para todos” e assim confere, àquele que nesse Universo se encontra, o predicado da existência.

Tem interesse notar, já que falamos em lei do discurso, que bem antes de formular a inexistência de A mulher, Lacan já se referia à posição feminina, em seu comentário sobre a posição da rainha no conto sobre a carta roubada, de Alain Poe, como a de um ser que se funda fora da lei. Mas a ideia que eu gostaria de tentar desenvolver, no tempo que me é dado aqui, é que se o que dá a razão da lei depende da representação do pai como puro nome, ou seja, do pai morto, do pai assassinado sobre o qual incidiu a exclusão declarativa “nada de x que não Φx”, o que a psicose nos revela, na irrupção de Um-pai como sem razão, conforme Lacan o formula na página 466 de “O Aturdito”, diz respeito justamente à ausência do limite constituído por esse ponto de exclusão fundante[7]. O Um-pai, como sem razão, não é o Pai morto sobre o qual se erige o Nome do Pai. Ele é antes expressão do transbordamento pulsional de um pai vivo, como é o caso do Deus de Schreber, que irrompe quando o Nome do Pai deixa de operar como ponto de exclusão que dá razão ao Universo, forçando o sujeito, acrescenta Lacan, para o campo do Outro estranho a qualquer sentido[8].

Voltando, então, ao que havíamos formulado no início, dissemos que se do ponto de vista do Universo fundado numa exclusão fundante, o masculino pode existir como figura do que tem lugar, figura do mesmo que se deixa contar segundo a ideia do que significa ser homem em conformidade com a norma fálica, a mulher não tem existência – assim como o movimento horizontal do bispo não existe no jogo de xadrez – porque no Universo o feminino não tem lugar. Ocupar a posição feminina significa, para o sujeito, se colocar fora do limite do Universo, alheio à norma do que pode contar como elemento no interior de seu conjunto. Em vista disso, fazer existir A mulher, na experiência psicótica, como resposta à irrupção de Um-pai sem razão, é realizar em si mesmo essa estranhexistência que demanda, talvez, um neologismo para escrevê-la, radicalmente distinta da existência regrada no interior do semblante de um discurso com a qual podemos nos familiarizar. É um existir, enfim, drasticamente diverso daquele que significa ter lugar no interior de uma ordem discursiva, uma vez que se trata, segundo formula E. Laurent, de uma solução que consiste em fazer de si mesmo substância daquilo que não tem representação simbólica, ao se colocar como meio de satisfação desse pai sem lei[9].

É nesse sentido que diante da irrupção de Um-pai sem razão, vivido como ameaça de um deus ignorante que coloca a ordem do Universo em perigo, só resta ao presidente Schreber fazer existir, em si mesmo, A mulher fora da lei, como destinatário de um gozo que não tem lugar no sistema. Ao passo que no contexto regrado da linguagem, cada elemento só vale por sua oposição diferencial aos demais elementos de uma estrutura simbólica, aqui o sistema não funciona mais. A linguagem, como se nota na língua fundamental do delírio de Schreber, não se desliga do gozo, mas se entrelaça a ele no nível pulsional do qual ela se encontra normalmente separada no discurso regrado. Por se fazer destinatário desse gozo não limitado pela castração simbólica, o sujeito se vê obrigado à exaustão de um trabalho sem ponto de basta, cujo termo só pode ser atingido assintoticamente.

Dali se explica finalmente porque Lacan se serve do adjetivo sardônico – e não sarcástico, como foi traduzido na versão brasileira – para descrever o que se passa com o sujeito submetido a esse gozo devastador. Pois o riso sardônico, referido à zombaria atroz desse deus gozador ao qual Schreber se oferece, não deixa de evocar o efeito venenoso provocado pela sardenha, erva extremamente tóxica conhecida como nabo do diabo, no mediterrâneo, a qual, antes de matar, imprime um riso assustador sobre o rosto daquele que a ingere.


REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Tratados de lógica: Organon. Madrid: Gredos, 1988.
CHATELINEAU, P. Lacan lecteur d’Aristote. Paris: A.F.I., 2001.
FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: Totem e tabu e outros trabalhos (1913-1914). Rio de Janeiro, Imago, 1996. p. 21-162. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13).
LAURENT, E. Trois énigmes: le sens, la signification, la jouissance. In: La Cause du désir, n. 23. Paris: Navarin, 1993.
LACAN, J. Le séminaire, livre IX: L’Identification (1961-1962). Inédito.
LACAN, J. Le séminaire, livre XV: L’Acte psychanalytique (1967-1968). Inédito.
LACAN, J. Autres Écrits. Paris: Seuil, 2001.
PEIRCE, C. S. Collected papers. Cambridge: Harvard University Press, 1932, v. II.
TEIXEIRA, A. “A fundação violenta do Universal”, disponível on line in: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/edicoesanteriores/index.php/universal.

[1]     Texto originalmente publicado no livro: ANTELO, M.; GURGEL, I. (orgs.). “O feminino infamiliar: dizer o indizível”. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021.
[2] Cf. A. Teixeira: “A fundação violenta do Universal”, disponível on line in: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/edicoesanteriores/index.php/universal.
[3] LACAN, J. Le séminaire, livre IX: L’Identification (1961-1962). Inédito.
[4] LACAN, J. Le séminaire, livre XV: L’Acte psychanalytique (1967-1968). Inédito.
[5] PEIRCE, C. S. Collected papers. Cambridge: Harvard University Press, 1932, v. II.
[6] Cf., a esse respeito: CHATELINEAU, P. Lacan lecteur d’Aristote. Paris: A.F.I., 2001.
[7] LACAN, J. “L’Étourdit”, in Autres Écrits. Paris : Seuil, 2001, p. 466.
[8] Vale lembrar que o Deus de Descartes, que Lacan define como o Deus que não engana, no seminário 3, por oposição ao Deus que engana do presidente Schreber, somente permite a constituição do Universo da ciência (Mathesis universalis) por ter seu lugar de exceção marcado pela declaração de uma exclusão fundante. Todos os fenômenos da natureza podem ser tratados cientificamente, declara Descartes, à exceção da própria garantia de Deus sobre a qual a ciência se apoia, mas da qual nada tem a dizer. Em lógica dos predicados, o Universal “para todo x ciência de x (x Cx)” se articula assim à exceção “existe um x que não ciência de x (Ǝx ~Cx)”. Dali decorre que as tentativas de explicitar a exceção, expondo os motivos de Deus, põem invariavelmente a perder a consistência deste Universo, conduzindo a impasses que dizem respeito justamente ao lado feminino. Isso se dá tanto no esforço interminável de Schreber, que se interroga pelos motivos de Deus, quanto no caso do bispo de Berkeley que, ao justificar a criação do Universo pelo desejo que sentia o Todo poderoso em ser admirado pela criação, termina por fazer de Deus uma mulher coquette. Indispensável ler, a esse respeito, REGNAULT, F. “De deux dieux”, in Dieu est inconsciente. Paris: Navarin, 1985. Cf. igualmente: LACAN, J. O Seminário livro 3: as psicoses (1955-56). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 73-85.
[9] LAURENT, E. « Trois énigmes : le sens, la signification, la jouissance ». In : La Cause du désir, 23. Paris : Navarin, 1993, p. 35.
Back To Top