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O amor nos tempos do cólera

Por Adriana Pessoa, Simone Vieira, Waléria Paixão – Comissão amurados
Imagem:adoro cinema.com
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O livro O Amor nos tempos do cólera começou ser escrito em 1984, em Cartagena de las Índias, ao final do ano sabático em que o autor Gabriel García Márquez se concedeu após receber o Prêmio Nobel de Literatura. Trata-se da história real dos pais do autor, que foi a fonte de inspiração para sua escrita. O romance se passa num contexto latino-americano do século XIX, recheado de contradições e desigualdades, entre guerras civis, crises econômicas e de saúde pública – esta última especialmente atravessada pelo surto da cólera.

O amor nos tempos do cólera retrata o amor de Florentino Ariza, telegrafista e violinista por Fermina Daza. A história inicia quando Florentino, a serviço dos correios, vai entregar uma carta na casa de Lorenzo Daza e conhece sua filha Fermina. O jovem se encanta com a moça e a partir daí passa a cortejá-la com cartas de amor românticas que promoveram encontros furtivos. Os dois se apaixonam, porém o pai de Fermina não aceita que ela namore um mensageiro. Então Fermina é mandada para a casa de uma prima distante e o pai ameaça Florentino caso não se afaste totalmente de sua amada.

Quando Fermina volta a reencontrar Florentino, percebe que o que havia entre eles era uma ilusão e, sem explicações, diz não querer mais nada com ele. Florentino sofre como um homem apaixonado deve sofrer, mas isso não abala seu amor por Fermina.

Sob suspeita de cólera, Fermina recebe a visita do Dr. Juvenal Urbino, jovem médico chegado de Paris, de família tradicional, que imediatamente se apaixona pela beleza da moça. Mesmo que, a princípio, ela não tenha demonstrado reciprocidade de interesses, eles acabam se casando e tendo filhos. Florentino permanece esperando o dia em que ficará com sua amada. Quando jovem, ele havia prometido manter-se fiel (leia-se virgem) ao amor de Fermina, porém, por um “acidente”, ele descobre os prazeres da carne, mantendo, no entanto, o amor por Fermina preservado.

Amor este que passou por mais de meio século vivido à sombra, num desencontro.  Fermina viveu sua vida, indiferente a Florentino desde que deixou de ser sua cúmplice ao romper o compromisso de noivado entre eles.

Florentino, obcecado pelo amor de Fermina, foi incapaz de perceber o sofrimento de sua amada, quando a reencontra anos depois. Especificamente, quando comparece ao velório de seu marido. Nessa ocasião, ele se declara novamente a Fermina, que, diante desta atitude, se sente insultada e o rejeita mais uma vez. Florentino se tornou rico, tendo herdado uma fortuna do tio.

A postura de Fermina não intimida Florentino na insistência em conquistar este amor. Retoma as cartas de amor a Fermina, e passa, com o tempo, a aproximar-se dela, até frequentar sua casa e daí combinarem uma linda viagem de navio.

Durante a viagem pelo rio Madalena, amparado pela amurada do navio,o amor acontece. Florentino serve-se dos tempos do cólera, para viver seu grande amor. Afinal, foram 53 anos, 07 meses e 11dias com as respectivas noites de espera, como o próprio personagem contabilizou, o que faz com que ele tome a decisão de permanecer no navio com a amada, numa nova subida do rio. Neste romance, Gabriel García Márquez traduziu poeticamente em um, dentre outros trechos do livro o amor sem limites de Florentino:

“O comandante olhou Fermina Daza e viu em suas pestanas os primeiros lampejos de um orvalho de inverno. Depois olhou Florentino Ariza, seu domínio invencível, seu amor impávido, e se assustou com a suspeita tardia de que é a vida, mais que a morte, a que não tem limites”. ¹

Na ficção de O amor nos tempos do cólera, o amor do personagem Florentino, “fez” o seu amor acontecer, dar certo, na amurada de seu navio.

O livro retrata de diferentes ângulos e escritas o amor “louco”, de Florentino por Fermina. Identificamos na obra o cultivo de um amor platônico, onde Florentino se mantém entorpecido e obsedado pelo amor de Fermina, planejando ao longo de sua vida o dia em que Fermina seria sua, mesmo com mais desencontros que encontros. Para além de uma história de um amor, constatamos a convicção inabalável mantida ao longo de anos por parte de Florentino que passou toda sua vida se preparando para este dia. Tornou-se bem-sucedido profissionalmente, construiu reputação social, esmerou-se nos cuidados com sua aparência pessoal, apurou seus méritos e talentos, tornando-se enfim, segundo suas próprias fantasias, uma figura digna e merecedora da consideração e do amor de sua eterna pretendida.

O amor é o tema central desta obra assim como é para a psicanálise desde Freud até Lacan.

Poderíamos partir da doutrina clássica de Freud citado por Brodsky² do amor como um dom e narcísico: amar o outro que é meu ideal, amar o outro como fui amado, amar o outro como meu semelhante. Numa perspectiva imaginária que Lacan reformulou em seu ensino como estágio do espelho, de maneira estruturante e da ordem do necessário ao humano, na vertente imaginária. No avanço de seus seminários, Lacan introduz a dimensão simbólica e real do amor.

Na lição de 6 de janeiro de 1972 do seminário O saber do psicanalista (onde lemos o enodamento dos discursos do amor e capitalismo) a versão do amor vem articulada ao falo, à castração.Encontramos a versão de Lacan do poema de Antonie Tudal “Entre o homem e o amor/Existe a mulher/Entre o homem e a mulher/Existe um mundo/Entre o homem e o mundo/Existe um muro”.

“O amor não é somente o que permite ao gozo condescender ao desejo, é também o que permite demonstrar o impossível da relação sexual existir”². O amor é,então, a vinculação do gozo com o desejo.

No avanço de seu ensino, Lacan elabora o conceito de amor como o que recobre a impossibilidade da relação sexual existir, tendo um efeito de suplência, de recobrir esta impossibilidade. Por consequência, pode-se inferir que o amor,ao mesmo tempo em que encobre, revela a inexistência da relação sexual, pois, apesar de sua função de inscrever algo de simbólico, ele também faz com que os sujeitos se confrontem com o nãotodo, algo do real que também comparece.

Por mais que o amor tente fazer a relação sexual existir, ele fracassa. O mito de dois se fazer o UM fracassa, algo do impossível do real em jogo se coloca, que escapa à significação fálica, que não cessa de se inscrever. E para Florentino, personagem central do livro, o amor se enlaçou mais pela via do gozo do que do desejo?

 “Fermina – disse – esperei esta ocasião durante mais de meio século, para lhe repetir uma vez mais o juramento de minha fidelidade eterna e meu amor para sempre”³.


Referências bibliográficas:
¹MÁRQUEZ, G. O amor nos tempos do cólera: tradução de Antonio Callado. Rio de janeiro:Record, 2019.
² BRODSKYGraciela .  Um amor mais digno. Em:http://x-enapol.org/pt/portfolio-items/um-amor-mais-digno
³ MÁRQUEZ,G. . Ibid
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