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Amor e anti-amor em Amy Winehouse[1]

Jésus Santiago (AME – EBP/AMP)
Fonte: aventurasnahistoria.uol.com.br
Fonte: aventurasnahistoria.uol.com.br

É provável que Amy seja um caso de exceção à tese de que a toxicomania seja uma tendência contrária ao amor que, como propõe Miller, “é um anti-amor, pois prescinde do parceiro sexual e se concentra no parceiro (a)sexuado do mais gozar”[2] . Ao tratar do caso de Amy, escolheu-se colocar o foco no questionamento do modo singular em que a ruptura fálica própria da drogadição acontece na sexuação feminina. Assim, a ruptura fálica e o amor-devastação não são coisas que andam juntas em sujeitos nos quais prevalece o não-todo fálico? Vejamos como essa conjunção entre a ruptura fálica e o amor-devastação aparece em uma das primeiras músicas, Fuck me pumps. A impressão é que a letra apresenta uma narrativa em que a cantora discorre de maneira irônica, para uma outra mulher, sobre o quanto o feminino aparece na fantasia masculina como um objeto depreciado, rebaixado e sem valor.

Se o casamento com o falo numa mulher se exprime, em princípio, pelo investimento libidinal e narcísico no corpo próprio – ser o falo –, não é justamente o fracasso disto que está em questão na drogadição feminina e que a letra da música visa captar?

Em Amy, há uma certa percepção niilista do feminino, na medida em que uma mulher se vê forçada a resignar-se em ser a parceira-amor, com a condição de tornar-se um objeto depreciado. É algo que coincide com o que é típico do alcoolismo feminino: o desinvestimento narcísico no corpo próprio. Isso é fatal para uma mulher no jogo das interações com o parceiro amoroso. Suas letras emitem a mensagem de que é inevitável o homem, de posse do gozo fálico, tomar uma mulher como um objeto rebaixado. Nenhuma chance para que seja um conector para que a mulher possa se encontrar no amor, cuja condição é consentir-se em ser Outra para si mesma.

Em Addicted, a ruptura fálica é ainda mais explícita, pois Amy se apresenta como radicalmente desinvestida em tornar-se a parceira-amor causa de desejo de um homem. Ela diz o seguinte: “Eu sou meu próprio homem. E não faz diferença se vou terminar sozinha… prefiro estar comigo mesma e fumar a erva que planto. Ela me viciou e faz mais do que qualquer pau de um homem (…)”.

Quando ela escreve Back to Black, o sintoma das adições coabita com o seu amor louco por Blake. “Quando nos conhecemos, foi atração mútua instantânea e fatal, e isso nunca deixou de ser assim. Sei que Amy e eu vamos ficar juntos. Ela é o amor de minha vida”.  Com esse título sombrio – Back to Black –, ela fala de sua volta para a escuridão e do luto concernente ao primeiro término e corte com seu parceiro amoroso. Como artista, ela tenta de alguma maneira tirar proveito do drama do amor que a dilacera e a devasta. Acerca disso, ela diz: “Quando me separei daquele cara eu não tinha mais pra onde voltar”.

Na música, ela se refere ao fato de que, nesse término, Blake não teve nem tempo para se arrepender, já que se mantinha ligado, em sua fantasia, com a antiga namorada. Back to Black diz mais ou menos o seguinte: “Voltou para a mulher que já conhecia e já se esqueceu de tudo… eu sigo um caminho perigoso… você volta para ela, e eu para a escuridão. Apenas dissemos adeus com palavras, e eu morri uma centena de vezes”.

Se o encontro de Amy com Blake se deu, via um amor à primeira vista, é preciso considerar as duas dimensões que se impõem para o sujeito. Tanto o clarão que advém do impacto do raio, quanto o lado foudrayant, isto é, destrutivo e mortífero do amor. Se o amor pode se tornar um drama, marcado por efeitos devastadores, é pelo motivo de que o clarão que advém do encontro pode rapidamente se transmutar na força destrutiva do raio. Enquanto parceiro, Blake é o alvo dos excessos da demanda dirigida aos deuses obscuros que possam, em seu inconsciente, fazer existir A mulher. Prevalece nela o amor narcísico, que traz em si o teor mortífero da busca da imagem ideal com a qual o sujeito procura o seu triunfo em sua própria ruína. Nessa renúncia radical dirigida à vida, o corpo falante, em sua máxima miséria, rechaça todas as ofertas advindas do Outro que nada pode… e é exatamente nisso que encontra o seu ser. É o que se enuncia em Rehab, pois o “no, no, no” do tratamento é, no fundo, apenas um detalhe de sua recusa intransigente do Outro.

É inegável a autenticidade da arte de Amy, seja como intérprete vocal comparável às grandes divas do jazz, seja pela sua capacidade de inventar o novo com o auxílio do velho. A arte não lhe foi suficiente para fazer a travessia do amor-devastação, em que o sujeito não precisa de ninguém, encontrando no circuito fechado do gozo autístico o seu próprio parceiro. Amy não pôde fazer de sua arte o seu parceiro-sintoma. Não pôde jogar a sua partida com o seu parceiro-gozo de modo a impor-lhe a lei singular do sintoma, um meio para consentir com o fato de que, diante da opacidade indizível do desejo, não há saber no real sobre o amor.


[1]Texto gentilmente cedido pelo autor para publicação em amurados #06
[2] MILLER, J-A. A teoria do parceiro. Os circuitos do desejo na vida e na análise. Contracapa: Rio de Janeiro, 2000, p. 170.
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