Por Frederico Feu de Carvalho (EBP/AMP) A erotomania é uma exigência pulsional derivada do postulado…
Aids, estigma e ódio
Victor Caetano – Comissão de Boletim
A pandemia com o segundo maior número de vítimas fatais desde o século passado, e que continua fazendo óbitos até a atualidade, é a de HIV/aids. A respeito da disseminação do vírus e da doença, iniciada nos anos 1980, a relação com o ódio é direta.
Nos EUA, em 1981, 41 jovens foram diagnosticados com sarcoma de Kaposi, câncer raro e quase que somente constatado em idosos. Acontece que este grupo de pacientes era composto apenas por homens homossexuais. Antes mesmo de se detectar que um vírus sexualmente transmissível atacava o sistema imunológico de quaisquer pessoas, independendo de sua orientação sexual, levando a quadros como o deste tipo de câncer, o significante “câncer gay” já circulava (1).
A partir daí, os sujeitos acometidos pelo vírus foram sendo cristalizados em predicações de tom pejorativo pela parte majoritária da sociedade estadunidense. Além disso, não encostar, não compartilhar objetos ou o mesmo ambiente que alguém com HIV – fato ilustrado no caso de um garoto hemofílico de 13 anos, portador do vírus, expulso da escola em 1984 (2) – eram práticas comuns, evidenciando as dimensões simbólica e imaginária que envolvem a aids.
O estigma esteve presente desde a chegada do vírus aos EUA e sua disseminação pelo mundo. A doença foi, por um tempo, chamada pelo CDC (Centers For Disease Control and Prevention) de “doença dos 4H”, pois seria relegada a homossexuais, hemofílicos, haitianos e usuários de heroína. Em outro momento, o mesmo CDC utilizou o termo GRID, que significa, traduzindo para o português, imunodeficiência relacionada a homossexuais (3).
Como exemplo dos dados expostos, tem-se o filme Clube de Compras Dallas, no qual os registros imaginário e simbólico a respeito da aids para o personagem heterossexual Ron Woodroof (Matthew McConaughey), recebem um feroz golpe do real. Num primeiro instante, o texano nega violentamente o diagnóstico por acreditar que apenas pessoas homoafetivas contrairiam o HIV (4).
A questão do estigma no Brasil
O Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS serve para detecção e medida relativas à discriminação e estigmatização do HIV, partindo da perspectiva de pessoas que vivem com o vírus (5).
O vídeo“Como a discriminação afeta a vida das pessoas vivendo com HIV/AIDS no Brasil?” (6), que divulga a pesquisa, traz, na marca de 2min e 18s, a seguinte declaração de uma das participantes:
“De 28 anos atrás, quando eu descobri o HIV, não muda muito. Quem recebe um diagnóstico hoje de HIV é o mesmo impacto, e tudo em cima do estigma, né (sic). Então o diagnóstico do HIV gera uma dor diferente de uma outra patologia que talvez possa matar mais rápido. E tudo por causa do estigma.”(ALOIA, Silvia,UNAIDS Brasil, 2019).
A fala da representante do MNCP (Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas) aponta para o fato de que no Brasil, e pode-se dizer que como em muitos outros lugares pelo mundo, a estigmatização do portador de HIV/aids se mantém como importante balizador da manutenção do sofrimento do sujeito que descobre ter o vírus em seu organismo.
A despeito de toda a evolução do tratamento medicamentoso que, há um tempo e cada vez mais, ajuda a promover qualidade de vida, redução da carga viral e longevidade para quem tem a doença, no campo da cultura há algo que, se é que não se mantém igual desde sua origem, no máximo apenas se atualiza.
Ódio: “Paixão do Ser”
“Não cante vitória muito cedo, não/
Nem leve flores para a cova do inimigo/
Que as lágrimas dos jovens são fortes como um segredo/
Podem fazer renascer um mal antigo”(7)
Feito um recorte dessa estrofe da música “Não leve flores”, de Belchior, podemos nos remeter àquilo que mobilizou Lacan ao ver “chegar o retorno do ódio em uma época em que se acreditava haver dele se livrado para sempre e mais um pouco” (8). Se o ódio é uma paixão do ser, como afirma Lacan em seu primeiro seminário (9), tem a ver com algo que se repete, se atualiza. Não é algo sobre o qual se obtém vitória e se comemora, ao menos não tão cedo. É paixão que permanece.
Romildo do Rêgo Barros, em pequeno texto intitulado “Ódio, semblante e ser” publicado no quarto boletim OCI do IX ENAPOL, recorre a Freud e Lacan para situar a segregação de modo topológico. A Austossung, expulsão originária, constitui o dentro e fora que irão se opor. Aquilo que é expulso do sujeito retorna como ódio do estranho, sem excluir a dimensão que se mantém como ódio de si (10).
Não se poderia entender a própria questão do ódio à população LGBTTQIA+ e, sua consequente segregação, a partir dessa premissa psicanalítica? O que dizer, ainda, do ódio e da exclusão relegada aos sujeitos portadores de HIV/aids? Nos tempos atuais, especialmente no Brasil, a propriedade perene que parece favorecer um “eterno retorno” do ódio pode ser ponto de partida importante para tentar dar conta destas questões.
Referências:
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Da Redação: 25 anos de Aids. Superinteressante, 2006, atualizado em 2016. Disponível em <https://super.abril.com.br/saude/25-anos-de-aids/>. Acesso em 25/06/2021.
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Ibidem
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Ibidem
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CLUBE DE COMPRAS DALLAS; Direção: Jean-Marc Vallé. Produção: Rachel Winter & Robbie Brenner. Estados Unidos: Universal Pictures, 2013. 1 DVD (116 min.).
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Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS). Sumário Executivo. Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS – BRASIL. (acesso em25/06/2021) 2019 [cerca de 92 p.]. Disponível em: <https://unaids.org.br/2019/12/estudo-revela-como-o-estigma-e-a-discriminacao-impactam-pessoas-vivendo-com-hiv-e-aids-no-brasil/>.
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UNAIDS Brasil. Como a discriminação afeta a vida das pessoas vivendo com HIV/AIDS no Brasil?Youtube, 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KaVXxzBhKrI>.
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Não Leve flores. Direção artística: Aldo Luiz. São Paulo: Universal Music Ltda, 1976 – Universal Music/ Polysom, 2017.
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Navarrin editor.Actualidad del odio, una perspectiva psicoanalítica. 10 de setembro de 2020. Disponível em: http://uqbarwapol.com/actualidad-del-odio-una-perspectiva-psicoanalitica-anaelle-lebovits-quenehen-eol/ (No presente texto foi utilizada a versão cedida para publicação neste boletim pela autora Anaëlle Lebovits-Quenehen, traduzida por Bartyra Ribeiro de Castro e revisada por Vera Avellar Ribeiro).
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Lacan, J. (1979). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. (B. de Milan, versão brasileira). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
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Romildo do Rêgo Barros. Ódio, Semblante e Ser. Boletim OCI 4. Disponível em: <https://ix.enapol.org/boletim-oci-4/>. (Texto extraído da discussão ocorrida na EBP Seção SP, em 26 de novembro de 2018, disponível em <https://youtu.be/M011CWWu68Q>).