skip to Main Content

Aids, estigma e ódio

Victor Caetano – Comissão de Boletim
Reprodução: Site Plano Crítico
Reprodução: Site Plano Crítico

A pandemia com o segundo maior número de vítimas fatais desde o século passado, e que continua fazendo óbitos até a atualidade, é a de HIV/aids. A respeito da disseminação do vírus e da doença, iniciada nos anos 1980, a relação com o ódio é direta.

Nos EUA, em 1981, 41 jovens foram diagnosticados com sarcoma de Kaposi, câncer raro e quase que somente constatado em idosos. Acontece que este grupo de pacientes era composto apenas por homens homossexuais. Antes mesmo de se detectar que um vírus sexualmente transmissível atacava o sistema imunológico de quaisquer pessoas, independendo de sua orientação sexual, levando a quadros como o deste tipo de câncer, o significante “câncer gay” já circulava (1).

A partir daí, os sujeitos acometidos pelo vírus foram sendo cristalizados em predicações de tom pejorativo pela parte majoritária da sociedade estadunidense. Além disso, não encostar, não compartilhar objetos ou o mesmo ambiente que alguém com HIV – fato ilustrado no caso de um garoto hemofílico de 13 anos, portador do vírus, expulso da escola em 1984 (2) –  eram práticas comuns, evidenciando as dimensões simbólica e imaginária que envolvem a aids.

O estigma esteve presente desde a chegada do vírus aos EUA e sua disseminação pelo mundo. A doença foi, por um tempo, chamada pelo CDC (Centers For Disease Control and Prevention) de “doença dos 4H”, pois seria relegada a homossexuais, hemofílicos, haitianos e usuários de heroína. Em outro momento, o mesmo CDC utilizou o termo GRID, que significa, traduzindo para o português, imunodeficiência relacionada a homossexuais (3).

Como exemplo dos dados expostos, tem-se o filme Clube de Compras Dallas, no qual os registros imaginário e simbólico a respeito da aids para o personagem heterossexual Ron Woodroof (Matthew McConaughey), recebem um feroz golpe do real. Num primeiro instante, o texano nega violentamente o diagnóstico por acreditar que apenas pessoas homoafetivas contrairiam o HIV (4).

A questão do estigma no Brasil

O Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS serve para detecção e medida relativas à discriminação e estigmatização do HIV, partindo da perspectiva de pessoas que vivem com o vírus (5).

O vídeo“Como a discriminação afeta a vida das pessoas vivendo com HIV/AIDS no Brasil?” (6), que divulga a pesquisa, traz, na marca de 2min e 18s, a seguinte declaração de uma das participantes:

“De 28 anos atrás, quando eu descobri o HIV, não muda muito. Quem recebe um diagnóstico hoje de HIV é o mesmo impacto, e tudo em cima do estigma, né (sic). Então o diagnóstico do HIV gera uma dor diferente de uma outra patologia que talvez possa matar mais rápido. E tudo por causa do estigma.”(ALOIA, Silvia,UNAIDS Brasil, 2019).

A fala da representante do MNCP (Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas) aponta para o fato de que no Brasil, e pode-se dizer que como em muitos outros lugares pelo mundo, a estigmatização do portador de HIV/aids se mantém como importante balizador da manutenção do sofrimento do sujeito que descobre ter o vírus em seu organismo.

A despeito de toda a evolução do tratamento medicamentoso que, há um tempo e cada vez mais, ajuda a promover qualidade de vida, redução da carga viral e longevidade para quem tem a doença, no campo da cultura há algo que, se é que não se mantém igual desde sua origem, no máximo apenas se atualiza.

Ódio: “Paixão do Ser”    

“Não cante vitória muito cedo, não/

Nem leve flores para a cova do inimigo/

Que as lágrimas dos jovens são fortes como um segredo/

Podem fazer renascer um mal antigo”(7)

Feito um recorte dessa estrofe da música “Não leve flores”, de Belchior, podemos nos remeter àquilo que mobilizou Lacan ao ver “chegar o retorno do ódio em uma época em que se acreditava haver dele se livrado para sempre e mais um pouco” (8). Se o ódio é uma paixão do ser, como afirma Lacan em seu primeiro seminário (9), tem a ver com algo que se repete, se atualiza. Não é algo sobre o qual se obtém vitória e se comemora, ao menos não tão cedo. É paixão que permanece.

Romildo do Rêgo Barros, em pequeno texto intitulado “Ódio, semblante e ser” publicado no quarto boletim OCI do IX ENAPOL, recorre a Freud e Lacan para situar a segregação de modo topológico. A Austossung, expulsão originária, constitui o dentro e fora que irão se opor. Aquilo que é expulso do sujeito retorna como ódio do estranho, sem excluir a dimensão que se mantém como ódio de si (10).

Não se poderia entender a própria questão do ódio à população LGBTTQIA+ e, sua consequente segregação, a partir dessa premissa psicanalítica? O que dizer, ainda, do ódio e da exclusão relegada aos sujeitos portadores de HIV/aids? Nos tempos atuais, especialmente no Brasil, a propriedade perene que parece favorecer um “eterno retorno” do ódio pode ser ponto de partida importante para tentar dar conta destas questões.


Referências:
*ouça a música citada: https://www.youtube.com/watch?v=UF1sCH7g1P8
Back To Top