15 de setembro de 2022
A “ordem da corda” e o sexo nas psicoses
Por Regina Cheli Prati
No terceiro eixo de trabalho para as III Jornadas da Seção Leste-Oeste da EBP, cujo tema é o sexo nas psicoses, Rômulo Ferreira da Silva1 interroga a respeito da constituição da vida sexual de um psicótico. Se o objeto a não foi extraído e sua sexualidade não conta com a conformação da fantasia fundamental, e se o sujeito não possui a significação fálica que pode localizá-lo simbolicamente na partilha dos sexos, como pode se constituir a vida sexual para ele?
Essa questão me compeliu ao estudo, e o encontro com o texto de Jacques-Alain Miller Mostrado em Prémontré2 foi esclarecedor. Nele o autor explica que “é precisamente porque o objeto a é extraído do campo da realidade que ele lhe dá seu enquadramento” (p. 152). Para ilustrar isso, Miller recorta de um quadro um pequeno quadrado. Esse recorte produz o enquadramento do furo e como consequência do restante da superfície. Diz o autor (ibidem),
O objeto a é como um tal retalho de superfície, e é a sua subtração da realidade que a enquadra. O sujeito como sujeito barrado, é esse furo – quero dizer, como falta-a-ser. Como ser, ele não é nada além desse pedaço subtraído. Daí a equivalência entre o sujeito e o objeto a. (…) Em um sentido, o sujeito não é nada – é o que se nota com $ –, mas também o sujeito é alguma coisa – e isso é o objeto de sua fantasia.
Como conclusão, Miller aponta que a extração do objeto a é equivalente à castração. Dessa forma, se o objeto a não foi extraído e a realidade enquanto ficção não foi constituída, como fica para o sujeito a sua relação com o Outro?
No texto A salvação pelos dejetos3, Miller nos dá uma ideia disso ao dizer que pode ser “que o gozo não se evapore, que não se torne volátil e não se confunda com o esplendor vazio da Coisa” (p. 230). Quando isso acontece o Outro social pode se tornar um “Outro mau, que quer gozar de mim, me usar, me fazer servir a seu uso e fins” (ibidem).
Esse é o caso de Marco, paciente de Antonio di Ciaccia4, que inventou para si a “ordem da corda”, uma lógica privada utilizada para justificar situações que não são justificáveis pela lógica comum. Esse paciente, que na idade de três ou quatro anos foi acometido de angústia durante uma excitação sexual, não pode dirigir-se ao pai para chamá-lo em sua ajuda. Nessa ocasião sentiu-se sozinho, sem meios e sem recursos para lidar com a excitação.
Aos cinco anos inventou uma solução: encarnou o Outro na figura imaginada de sua avó e tomou suas palavras como mandamentos que se esforçava para cumprir. Entre os mandamentos havia o de “praticar corridas”, que se converteu para ele em uma ordem a ser executada como um mandamento bíblico. A outra invenção foi o ritual de carregar consigo uma corda da mesma maneira como os católicos carregam o rosário. Isso o levou a inventar a “ordem da corda”, que o dotou de uma lógica que lhe permitiu enfrentar a vida.
Marco atribuía ao pai a incapacidade de lhe dar uma resposta, e considerava que a palavra que faltou era o que podia ter lhe permitido fazer-se homem e enfrentar a vida. Na análise, formula a seguinte pergunta: “su padre era sordo, o bien era él mismo quien lo había ubicado en ese lugar?” (p.47). Frente a essa questão o analista passa a encaminhar Marco para seu pai em busca de conselhos práticos e válidos para a vida, e solicita que traga para as sessões as respostas dadas por ele sem tomar nenhuma decisão precipitada. Além do pai, o analista passou a remetê-lo também a seu empregador e à mãe.
Esse método de dar “voltas com a palavra” trouxe como consequência a interrupção das queixas relativas ao pai e permitiu a Marco terminar a universidade, encontrar um trabalho, mudar de emprego, escolher lugares para correr, encontrar uma namorada, deixá-la, encontrar outra e, finalmente, casar.
O casamento trouxe problemas: como sair para praticar as corridas de todas as tardes seguindo a “ordem da corda” e, um problema ainda mais consistente, como fazer para “hacer el amor, para coger”? (p. 48).
A sexualidade de Marco era dividida em duas. De um lado estava a sexualidade da “ordem da corda” ligada a um traço de perversão e à masturbação. Do outro, a sexualidade com uma mulher. Ela não era da “ordem da corda”, mas da ordem do vazio. “Empujo, empujo, y no sale nada” (ibidem). Não ejaculava. Nesse campo onde encontrar resposta? A quem remetê-lo?
É então que Di Ciaccia se converte em um terceiro e solicita que Marco lhe explique o problema. Se servindo de Freud, Lacan e Miller, em especial do texto Uma partilha sexual5, Di Ciaccia busca com Marco descobrir o mistério que une o homem com a mulher. Essas “voltas com a palavra” terminam quando Marco deixa de perguntar a respeito e, algum tempo depois, confessa que consegue ejacular e que “hasta siento placer” (p. 49).
Marco chegou à conclusão de que lhe faltou certo enfoque na vida, que deveria ter sido dado pelo seu pai e se baseado em sua palavra. Na ausência disso, a “ordem da corda” é um sistema que torna essa falta suportável. Foi somente essa “ordem” que lhe possibilitou confrontar-se com o perigo imaterial, mas permanente. Marco conclui que a lógica da “ordem da corda” é menos operatória do que a baseada na palavra do pai, que ele define como da ordem do vazio. Sabe que a ordem do vazio dá acesso à lógica e a um saber que permite encarar corretamente as coisas da vida, e pergunta se em algum dia poderá “lograr sostenerme en el vacío, apoyarme en el orden del vacío?” (ibidem).
É assim que esse psicótico, apoiado pelas suas invenções e pela análise, constitui sua vida sexual. Que outros exemplos de suplências e/ou compensações possam surgir em nossas Jornadas!
Referências:
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Silva, Rômulo Ferreira da. O sexo nas psicoses. In: Boletim Arranjos número 1, de 16 de março de 2022. Disponível em https://www.ebp.org.br/slo/index.php/jornadas/iii-jornadas-ebp-secao-lo-o-misterio-da-sexuacao/eixos-de-trabalho/. Acesso em 06/08/2022.
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Miller, Jacques-Alain. Mostrado em Prémontré (1983). In: Miller, Jacques-Alain. Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
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Miller, Jacques-Alain. A salvação pelos dejetos (2010). In: Miller, Jacques-Alain. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011.
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Di Ciaccia, Antonio. El muchacho de la cuerda. In: Miller, Jacques-Alain. Cuando el Otro es malo. 1ª ed. Buenos Aires: Paidós, 2011.
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Miller, Jacques-Alain. Uma partilha sexual. In: Opção Lacaniana online. Ano 7, Número 20, de julho de 2016. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_20/Uma_partilha_sexual.pdf. Acesso em 14/08/2022.