skip to Main Content

A inversão da função do amor

Cristina de Bocca (EOL/AMP)[1]

O sujeito suposto saber, pivô da transferência

A casa do conhecimento, JaumePlensa. Fonte: Pinterest.

Em O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan aborda o conceito freudiano de transferência a partir do sujeito suposto saber como seu pivô.

É a vertente epistêmica da transferência, a “transferência de alienação”, cujo fulgor pôs um véu sobre a vertente libidinal, a “transferência de separação”. Esses dois modos de nomear a transferência fazem referência às duas operações de causação do sujeito elaboradas por Lacan no seminário citado: a operação de alienação, da qual se desprende o S1 e a operação de separação cujo efeito é o objeto a, que vem preencher o vazio do sujeito.

Podemos localizar o Seminário 11 no quarto paradigma do gozo, desenvolvido por Jacques-Alain Miller[2].

Lacan se dedica à articulação estreita entre o simbólico e o gozo e as duas operações dão conta dessa elaboração. Sustenta que desde que haja sujeito suposto saber, há transferência e que essa é a condição de possibilidade de uma análise: tanto o sujeito como o analista estão concernidos, o analista em posição de semblante de saber e de causa de desejo do analisante.

Embora o objeto a, elaborado nesse seminário, fique velado pela suposição de saber no analista, sua função no nível da transferência é fundamental, já que é em última instância o que comanda a análise. O efeito que se produz é a crença no inconsciente, um inconsciente que se abre e se fecha, sua abertura favorece o deciframento, enquanto o objeto intervém no fechamento do inconsciente e o amor fica do lado do engano.

A transferência é concebida então como um fenômeno ligado ao desejo: “De cada vez que esta função pode ser, para o sujeito, encarnada em quem quer que seja, analista ou não, […] a transferência já está então fundada”[3]. Ou seja, podemos ver surgir a transferência fora da análise, mas não é possível a análise sem a transferência. A transferência analítica estabelece a relação entre S1 e S2 e permite mobilizar e ler o inconsciente.

Supõe-se saber ao analista e também que ele saia ao encontro do desejo inconsciente do sujeito. O desejo é o eixo fundamental que sustenta o fato de considerar que é o sujeito suposto saber o pivô da transferência. Seja o desejo do analisante que, incompatível com a palavra, será lido entrelinhas, será cingido, seja a função desejo do analista a partir da qual conduzirá essa análise.

É no nível do desejo do Outro que o sujeito reconhecerá seu desejo, tratando-se do encontro do desejo do analisante com o desejo do analista. Nesse nível, há a relação ao Outro e Lacan pensa o inconsciente a partir da histeria, a partir da incidência do desejo do Outro. Dali surge o conceito de histerização como condição da análise.

É no final do Seminário 11, no capítulo “Em ti mais do que tu”, que surgirá com intensidade o objeto alojado no analista e que estava velado pelo sujeito suposto saber.

A transferência, suporte do sujeito suposto saber

Se levarmos em conta o último ensino de Lacan, diremos que a transferência é o suporte do sujeito suposto saber[4]. Por que se produz essa inversão?

A partir dos anos setenta, há uma mudança de paradigma, já não é a relação entre sentido e real, mas o eixo é a exclusão do sentido e o real: não há relação. O inconsciente já não é pensado a partir da histeria, mas da psicose: S1 sozinho, o inconsciente vinculado a lalíngua definida como “a palavra antes de seu ordenamento gramatical e lexicográfico”[5]. Estamos no inconsciente quando não há sentido. O inconsciente não está no lugar do sujeito suposto saber e sim no nível dos efeitos traumáticos de lalíngua sobre o falasser: o inconsciente como embrulhada do sujeito com o real.

A palavra, ineliminável em uma análise, não serve à comunicação, mas é uma função de gozo, para o qual Lacan inventa o neologismo apalavra. Dizer então que a transferência é o suporte, o sustentáculo do sujeito suposto saber, é pensar o amor como o que pode fazer “condescender o gozo ao desejo”, o que pode suprir a ausência da relação sexual e fazer mediação entre os Uns sozinhos, colocando em evidência a oposição entre o enquistamento do gozo autoerótico e o amor que mostra sua abertura ao Outro.

No campo da transferência, será preciso que o analisante ame seu inconsciente para que possa surgir o inconsciente transferencial, o que implica a articulação, a relação simbólica entre S1 e S2, a crença de que o sintoma pode ser lido, já que apenas pela transferência o sintoma pode enodar-se ao inconsciente. O amor será o que tornará possível que o inconsciente exista como saber.

Resta ao analista responder a esse amor com o objeto da pulsão, para que elaborar o inconsciente seja produzir seu furo.

Tradução: Angélica Cantarella Tironi

[1] Texto cedido gentilmente pela autora para publicação Boletim amurados.
[2] Miller, J-A. (2000[1987]). El lenguaje, aparato del goce. Buenos Aires: Colección Diva, p. 154.
[3] Lacan, J. (1998[1964]). O seminário, livro 11 : os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor. p. 220.
[4] Miller, J.-A. (2005[2004]). “Uma fantasia”. In Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Edições Eólia, (42), pp. 7-18.
[5] Idem. (2000[1987]). Op. cit., p. 172.
Back To Top