Por Frederico Feu de Carvalho (EBP/AMP) A erotomania é uma exigência pulsional derivada do postulado…
A feminização como fetiche
Claudia Murta (EBP/AMP)
O fetiche, segundo Freud, no texto fundamental sobre o “Fetichismo,” 1 é um símbolo do pênis, um pênis muito especial, o pênis da mãe que a criança outrora acreditava existir, contudo a criança, mesmo sabendo que não existe, se recusa a acreditar que não existe e, desse modo, elege um fetiche, algo que substitui o pênis da mãe tão especialmente adorado.
A recusa da criança em aceitar que a mãe é castrada acontece diante da possibilidade de vir a ser, por sua vez, castrada também. É um medo que afeta o narcisismo próprio infantil e na vida adulta se repete quando o trono está em risco, enuncia Freud. Sendo assim, a mulher fálica é o maior símbolo de fetiche, pois o falicismo faz do próprio corpo um grande falo. As roupas e acessórios de fetiche encobrem, substituem e valorizam esse pênis especial idealizado na mulher para quem é transferida a ideia da mãe fálica.
Segundo Freud, uma aversão aos órgãos genitais femininos reais se apresenta no fetichista e, portanto, o fetiche eleito é praticamente um triunfo sobre a ameaça de castração, dotando as mulheres de características mais suportáveis como objetos sexuais. Um substituto, eis o que, nessa perspectiva, o fetiche é; um substituto do órgão real com o qual se pode gozar plenamente.
Na perspectiva lacaniana disposta no Seminário “A Angústia” 2, o fetiche desvela a dimensão do objeto como causa do desejo. Assim, por um lado, o fetiche se apresenta como um substituto, um significante, por outro, se apresenta como um objeto, o próprio objeto causa de desejo e base da fantasia. Sendo o fetiche o estranho objeto sexual, monumento ao horror da castração, também é o instrumento que permite encenar a fantasia sendo o objeto causa de desejo.
A feminização é trabalhada no contexto da comunidade fetichista, entre outros fetiches, por meio da Crossdresser. Em sua definição, Crossdresser é quem se veste com roupas do sexo oposto e tenta se aproximar o mais perfeitamente possível do modo de ser desse sexo. Por isso uma Crossdresser sempre tem uma mulher ao seu lado que a inspira e com a qual ela busca aprender o que é ser uma mulher. Uma maneira possível para o homem entender uma mulher, por um lado, sentindo como uma mulher, por outro, um meio para tornar suportável o reencontro com o infamiliar do sexo feminino.
Acompanhando melhor esse processo, trago a entrevista de Ana Cross3, Crossdresser fetichista, oferecida à Rainha Regis, coordenadora do Grupo “Universo”, na qual explica um pouco sobre o que é ser Crossdresser ou CD e, em um de seus primeiros esclarecimentos, enuncia:
“as pessoas do meu convívio não têm a menor ideia do meu fetiche ou de minhas práticas, já que é uma característica de uma CD viver em dois mundos totalmente divididos. Como eu vivo duas realidades totalmente separadas, quando me apresento como homem sou 100% a figura masculina esperada e não há essa confusão. E, quando estou como Ana, sou a mulher das fotos, e não há dúvidas do que eu seja.’’
A CD vivencia seu fetiche sem que isso atinja a sua vida privada. Aliás, segundo Freud, esse é um dos fundamentos do fetiche por se tratar de algo tão íntimo e privado que só vem a público se o fetichista quiser. Quando Ana Cross diz que é uma característica da CD viver em dois mundos distintos, ela revela uma característica primordial do fetiche distanciando-a de uma problemática de gênero. A CD não quer ser uma mulher e nem tem questões quanto a isso. Ela tem um fetiche secreto que, graças à comunidade fetichista, pode compartilhá-lo de algum modo. Fetiche que se configura na fantasia da mulher fálica ou “mulher perfeita” como expressou uma CD minha amiga, Dayla Kross. Eu demorei a entender que “a mulher perfeita” a qual elas fazem referência é a fantasia da mulher fálica por elas fetichizada. Continua Ana:
“Uma Crossdresser venera o feminino a ponto de querer se transformar nele. Isso é muito além de sexual. Por exemplo, o menino que gosta de se ver usando vestidos é estranho, eu sabia, mas sempre tive muita atração pela figura feminina. Nunca me senti atraída por homens, sempre me senti vidrada pela beleza feminina. Acho que até excessivamente… ’’
Muito atraente essa exposição do amor da Cross pelo feminino. Na definição sobre heterossexual proposta em “O Aturdito” 4, Lacan lembra que “heterossexual é aquele que ama as mulheres não importa qual seja seu sexo próprio”. Assim, é possível ser heterossexual ao amar as mulheres independentemente da posição a partir da qual se assume esse amor. Ana Cross é heterossexual e o fato de se vestir de mulher não a faz menos heteros. Contudo, há certa flexibilização nisso, pois de acordo com suas próprias palavras: “CD 100% heterossexual, um homem 100% masculino é impossível, porque a CD tenta se fazer feminina o máximo possível, desse modo, são coisas excludentes, pois não se é 100% masculino de pernas depiladas e cinturinha definida…”. Há algo no fetiche que vai além do jogo e da performance e esse algo mais é aquilo que captura o sujeito, isto é, a posição de objeto causa de desejo que o fetiche desenvolve. A CD, ao encenar a fantasia da mulher fálica, “mulher perfeita”, ama a mulher que ela produz. Assim, o fetiche é a própria maravilha das maravilhas que causa o desejo e as faz amar a “mulher perfeita” que produziram.
A Crossdresser é o fetiche que representa a fantasia da mãe fálica permitindo ao fetichista suportar se relacionar com uma mulher por meio da “mulher perfeita” que produz. Seja como homem, seja como mulher, seu interesse sexual é sempre a mulher, tal como enuncia Ana Cross. Pensando o tema da feminização a partir do fetiche da Crossdresser, podemos entender que a CD exibe a mulher fálica que permite uma relação possível com uma mulher para o homem que ela, Crossdresser, também é.
Tendo em vista a proposição lacaniana de que o amor faz suplência à relação sexual que não há, me pergunto se o fetiche da Crossdresser, com a produção da fantasia da “mulher perfeita” faz do amor à mulher fálica papel de suplência da relação impossível entre os dois lados distintos da sexuação.
Eu trouxe uma análise externa à condição da CD, pois só consigo ser alguém que assiste do lado de fora seu processo. A arte trata a questão de modo mais intenso e dramático. Para perseguirem a problemática, uma indicação do nosso cartel é o filme do renomado diretor François Ozon – Une Nouvelle Amie5 –, no youtube pode-se encontrar um extrato muito interessante para quem quiser assistir.