15 de setembro de 2022
Entrevista com o Artista Taigo Meireles
Por Giovanna Quaglia
Reparou na obra de arte que inspirou o designer do cartaz, o boletim eletrônico e a criação do teaser das III Jornadas da Seção Leste-Oeste?
“Beatriz no círculo da luxúria” é o nome da obra realizada, em giz pastel seco sobre papel, por Taigo Meireles[1] em 2011.
Taigo Meireles é pintor, nascido em Brasília, no Distrito Federal, e criado na cidade satélite de Ceilândia. Começou a desenhar e pintar ainda criança. Cursou artes visuais no Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UNB). Fez mestrado e foi professor da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes.
Confira, abaixo, os pontos centrais da entrevista[2] realizada por Giovanna Quaglia (EBP/AMP) com Taigo Meireles para essa segunda edição do boletim Arranjos[3].
Formação de um artista
M. – “Essa formação é lenta, é algo latente… Porque é o repertório mesmo, a maneira como a gente percebe, como os artistas aparecem, como eles surgem. De repente, tem uma criança ali brincando e passam-se alguns anos, ela está lá propondo coisas, desenvolvendo uma percepção particular do mundo, das questões. Então, essa formação, da maneira como eu entendo, como eu sinto essa coisa do artista, é algo que se dá lentamente. Como uma espécie de tempo para a formação de um coral: coisas que se desenvolvem lentamente e que, numa conjunção de inúmeros fatores, às vezes até muito difíceis de acontecer, convergem num lugar específico e numa pessoa específica. Muitos artistas em potencial não levaram adiante essa necessidade de expressão nem suas habilidades para isso. Então, para que haja uma obra – e quando eu falo obra, eu penso num conjunto e num conteúdo consistente – muitas coisas precisam convergir, externa e internamente, coisas que dependem de mim e outras coisas sobre as quais eu não tenho tanto controle. Mas é basicamente isso, em termos gerais”.
História com a arte
M. – “Eu nasci em Brasília e passei minha infância na periferia. Então, afastado desse ambiente, atmosfera e paisagem que sempre permearam o universo dos artistas. Cidades estabelecidas, cidades antigas, onde há uma efervescência por tradição. Grandes cidades. Brasília não, Brasília nunca pôde oferecer isso nesses termos. Então, você acaba indo buscar através das mídias, dos livros. Surge alguma coisa e você vai atrás. Na minha época, tinham bancas de revista, tinha um livro ali, algo que apontasse para as artes. Sempre me interessei pela tradição, pelas produções artísticas da renascença, desde criança. (…) Eu tive acesso à arte através de ateliês, de pequenos ateliês de professores de artes, mas sem aquelas pretensões artísticas. Na família, um tio materno e minha avó paterna pintavam. Foi assim que se deu. Eu dei continuidade por mim mesmo. Depois eu ingressei na Universidade, onde tive contato com a grande teoria e crítica da história da arte”.
Persistência
M. – “Você precisa do ímpeto, de um desejo imparável, de uma disposição em sacrificar certas ordinariedades, certas estruturas sociais, certos modos de vida e certas percepções. Você precisa abrir mão e sacrificar isso se você pretende alcançar algo de expressivo, algo que possa expressar-se com alguma contundência, com alguma eloquência. A formação de um artista passa por aí, por uma disciplina. A pintura é a prática, o campo, a prática da disciplina. Ela exige tudo de você, te exige integralmente. E é claro que, mesmo vivendo no mundo contemporâneo – como a gente conhece bem, tendo que lidar com todas as outras atividades, com todas as outras demandas – você precisa abrir mão disso, para se dedicar a uma produção, pois você vai encontrando meios e vislumbrando possibilidades muito lentamente. Então, é necessária uma paciência fora do comum para a contemplação, para a prática e o exercício exaustivos, da pintura, no meu caso. É um trabalho, um exercício de contemplação e um exercício prático, de factura mesmo, de execução. Para a formação de um artista, isso é indispensável: a disciplina e a vontade de uma busca pela verdade”.
Ser artista
M. – “Hoje nós vivemos em um mundo repleto, prolixo de personalidades artísticas, que podem ser burladas facilmente. Então, pululam – por todos os universos virtuais, as redes virtuais – personalidades artísticas. Você realizar uma obra é outra história. A pintura é uma espécie de chamamento, é uma vocação. É uma espécie de encontro com uma necessidade metafísica que precisa se realizar. Eu vejo dessa forma. Eu estou falando da minha experiência. Minha experiência é essa: existe algo que precisa ser alcançado através de uma obra e da prática dessa obra. E por que a gente faz isso? Por que a gente insiste em fazer isso? Por que a gente se sacrifica tanto em fazer e deixa de fazer outras coisas na vida, de seguir outra carreira, de viver de outra forma, para viver essa experiência? Porque tem alguma coisa aí. Tem alguma coisa nessa experiência que é não somente a realização de certos desejos e fixações. Vai para muito além disso, porque te proporciona uma experiência estética de alto nível. Também, claro, consequentemente, uma obra pode proporcionar uma experiência estética de alto nível a um terceiro. Porque ela é algo sempre feito diante desse outro, sempre na expectativa, mesmo imaginária, mesmo virtual. Algo que é interno, algo que era oculto por uma série de impossibilidades, através da disciplina, da técnica e do ímpeto, se torna uma obra e, de repente, alcança outra pessoa. Eu vejo dessa forma”.
Inspiração
M. – “A inspiração, a essa altura, é algo longínquo: depender da inspiração. Eu trabalho no ateliê todos os dias. Acordo cedo e vou trabalhar. Às vezes, adentro a noite trabalhando. Essa coisa que a gente entende por inspiração eu chamo de vida interior. É a capacidade de, interiormente, espelhar certas questões profundas, certas imagens, certos fenômenos profundos – com profundidade, na verdade – aos quais você se expõe, aos quais você está sensível. Muitas pessoas são inspiradas, muitas pessoas são sensíveis, mas só isso não basta. É preciso conseguir verter isso através de uma performance física e uma capacidade técnica, verter isso em uma expressão, buscando um tipo de eloquência, de diálogo com esse outro. Então é onde essa coisa converge: uma hipersensibilidade, uma capacidade de espelhar esses fenômenos e uma capacidade de verter isso a um meio específico, no meu caso, a pintura. Estou sensível sempre. Assim, claro, que você faz um recorte de mundo”.
Custo de uma criação
M. – “Para que uma obra séria se dê, tem um custo muito alto, um custo emocional altíssimo. Eu mesmo fico exausto depois de concluir ou durante a execução de uma obra, de uma série, porque isso exige muito, não só fisicamente, não só um esforço técnico, é um esforço emocional. Então isso, de alguma forma, é o conteúdo de uma obra. (…) São obras de fôlego, precisam de uma disposição. Uma disposição física para realizar. Você precisa movimentar, trabalha em pé, é um exercício tremendo. Mas, enfim, é a maneira de imprimir essa organicidade, que é o que interessa hoje em dia numa obra diante de tanta digitalização, de tanta virtualidade. Acho que a experiência com a obra de arte, com a pintura, com a escultura, fica cada vez mais rica, com o retorno à realidade”.
A presença da arte
M. – “Há um conceito aí que é caro à própria pintura: a presença. A presença, ela é assim, ela muda tudo, é uma outra ordem de experiência. Repito, cada vez mais cara, cada vez mais extinta, por conta da experiência com o virtual. Inclusive, as crianças que nascem por esses anos de agora, já começam sua experiência, a formação da sua percepção, do seu acervo de experiências, através das telas. Então, existe aí uma espécie de substituição: a virtualidade sobre a realidade. Os efeitos disso são muito evidentes na vida de muitos jovens. Muitos já devem viver através das telas, não querem se movimentar e não querem fazer nada. (…) Ao ir a uma exposição, o artista pode apresentar um conjunto. A pessoa pode fazer um tour, pode olhar uma ao lado da outra. A questão da escala também existe e isso muda tudo. Ao invés de estar vendo uma tela pelo celular, você a vê numa escala real e isso te oferece outra experiência”.
Do texto a uma obra artística
M. – “Quando se trata de um texto, você precisa da habilidade de interpretar, é claro, e as imagens mentais vão se formando à medida que você avança no texto, na leitura. A imagem, a pintura é imperativa, no sentido de ser imediata. A imagem se impõe de uma só vez. Você pode até fazer uma leitura das partes, mas tem um “que” de instantâneo, que se apresenta por inteiro, diferentemente do texto. (…) Você acaba extraindo algo. Uma obra se constrói dessas experiências, de uma espécie de aura poética que flutua. Se você, em um texto, tem a narrativa, a descrição da própria história. Enfim, você tem uma série de sensações que surgem, num momento ou noutro das narrativas. Você tem essa experiência, essas sensações, essa coisa que está acima, flutuando acima das representações, da proposta do texto, da história em si. Toda história tem um clima, uma atmosfera, de modo que te oferece sensações diversas. Enfim, neste ponto foi que eu entrei na história da Beatriz, nesse conjunto”.
A obra nas jornadas
T M – “Ficou muito bonito o trabalho de design do cartaz, gostei bastante. Essa obra faz parte de um conjunto de desenhos, pastel seco sobre papéis, aparece carvão nas outras obras, mas é desenho e é sobre papel. É um conjunto chamado “Beatriz no círculo da luxúria”. Eu tinha um livro de sonetos do Dante[4]: “Vita Nuova”[5]. Nele, Dante, na juventude, já citava Beatriz, essa figura, esse arquétipo, essa imagem emblemática feminina que aparece para os poetas e artistas sob algum nome, algum signo. Para Dante, essa imagem é Beatriz, que reaparece na própria “Divina Comédia”[6]. Isso gerou um movimento interno, uma espécie de excitação por essa imagem, por essas referências que saem de um grande autor, de um grande artista. Enfim, existe uma tradição de ilustrações sobre a “Divina Comédia” e é claro que o desenho está muito próximo dessa tradição e das ilustrações, de modo que foi um mote, um disparador para que eu mergulhasse nisso como tema poético. Eu já vinha explorando essas imagens do nu feminino, a partir de modelos que utilizei. São sempre presentes, na minha produção, a figura e, principalmente, esses modelos femininos. Foi aí que eu consegui cruzar essa abordagem do desenho, da execução do traço, com um tema. E aí surgiu esse conjunto que é “Beatriz no círculo da luxúria”. É um desenho que tem uma sensualidade, além de uma insistência em sobrepor, em refazer o movimento de construção e sobreposição, que cria uma espécie de movimento latente na figura. Também, claro, evoca uma sensualidade, um erotismo, que está presente no próprio texto, na própria poética da coisa: “Beatriz no círculo da luxúria”. Foi isso, foi um conjunto de obras que eu gostei muito de realizar. Esses grafismos, essas sobreposições voltaram a aparecer, inclusive, na Imago[7], que tem a figura e essas linhas, esses desenhos que sobrepõem a imagem, mas são linhas e desenhos que nascem da própria imagem, criando uma segunda dimensão, acima da original, um efeito expressivo”.
“Eu achei curiosa a escolha que vocês fizeram dessa imagem [para compor a arte das Jornadas], por conta do contexto que evoca o erotismo, a sexualidade. Parte dos nus, essa figura feminina, evoca uma aura erótica, sexual. Claro, eu achei que poderia oferecer uma camada poética, artística para o texto, para propostas conceituais. Acho que isso é rico demais. Gostei muito! (…) Acho interessante, muito ricas essas aproximações, ainda mais quando a obra pode oferecer esse diálogo. Então, foi muito bom. Eu agradeço pelo convite, pela requisição da obra e por estar participando. Muito bom!”