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A gripe espanhola e a pandemia de COVID-19: reflexões em tempos de perdas e mortes

Por Regina Cheli Prati– Comissão amurados
Imagem: Site Sigmund Freud Museum
Imagem: Site Sigmund Freud Museum

Existem muitas semelhanças entre o que aconteceu na epidemia de gripe espanhola no início do século passado (1918-1919) e o que estamos vivendo na pandemia de COVID-19 (2019 – ).

A globalização e os meios de transporte, em especial, o aéreo, fizeram com que o Sars-CoV-2 – um novo corona vírus surgido em Wuhan, na China, em dezembro de 2019 – chegasse, em poucos meses, ao restante do mundo.

Em 1918, a conexão entre os países era menor, mas o epílogo da Primeira Guerra provocou o deslocamento de tropas que levaram consigo uma mutação do vírus influenza (H1N1), de origem aviária, para diferentes países.

Comum foi a busca por medicamentos supostos curar e as mudanças na rotina das pessoas que, na atual pandemia, levaram ao esvaziamento das cidades, consequência do lockdown– medida para desacelerar a propagação do vírus – que causou em muitos uma sinistra sensação de estranhamento. Habituais também foram os que negaram a letalidade de ambos os vírus.

Para termos uma noção da mortalidade causada pelos vírus citados, foi consequência da gripe espanhola a morte aproximada de50 milhões de pessoas. Na atual pandemia de COVID-19 atingimos,até o momento,quase 5 milhões de óbitos.

A maneira como avançava sobre a população e a rapidez com que levava à morte, fez da gripe uma das mais mortais epidemias da história. Com origem nos Estados Unidos, recebeu esse nome por serem os meios de comunicação espanhóis os que anunciaram a sua existência. O relato de um médico norte americano citado por Câmara Filho, nos dá uma ideia do quão avassaladora era:

A doença começa como o tipo comum de gripe, mas os doentes desenvolvem rapidamente o tipo mais viscoso de pneumonia jamais visto. Duas horas após darem entrada no hospital, têm manchas castanho-avermelhadas nas maçãs do rosto e algumas horas mais tarde pode-se começar a ver a cianose estendendo-se por toda a face a partir das orelhas, até que se torna difícil distinguir o homem negro do branco. A morte chega em poucas horas e acontece simplesmente como uma falta de ar, até que morrem sufocados. É horrível. Pode-se ficar olhando um, dois ou 20 homens morrerem, mas ver esses pobres-diabos sendo abatidos como moscas deixa qualquer um exasperado1.

Os avanços da ciência da época não permitiam que se estabelecessem leis precisas sobre o contágio e a ação do vírus no organismo. A inexistência de antibióticos – descobertos uma década depois – a desnutrição e as péssimas condições de higiene pós primeira guerra, tornavam o tratamento quase impossível.

Atualmente, a administração de antibióticos, de dexametasona, o uso de oxigênio e a ventilação mecânica – suporte respiratório –salvou muitas vidas.

Freud não foi poupado da aflição causada pela gripe. Em 25 de janeiro de 1920 perdeu sua quinta filha Sophie Halberstadt, mãe de dois de seus netos. Respondendo a uma carta de seu amigo Ludwig Binswanger em 14 de março de 1920 Freud escreve:

Na noite desse mesmo dia [22 de janeiro de 1920], recebemos um telegrama inquietante de nosso genro Halberstadt, de Hamburgo. Minha filha Sophie, de 26 anos, mãe de dois meninos, fora atingida pela gripe. Ela faleceu no dia 25 de manhã, após 4 dias de doença. Os trens estavam então parados e foi por isso que não pudemos nem mesmo ir até lá. (…) Desde então, um peso opressor pesa sobre todos nós, e sinto-o também em minha faculdade de trabalho. Nenhum de nós dois pudemos ainda superar esta monstruosidade: que filhos possam morrer antes dos pais2.

O cunho não natural da perda de um filho tem um caráter atroz e até certo ponto insuperável abordado por Freud no texto Reflexões para os tempos de guerra e morte3.Nele,ele lembra que apesar de sustentarmos que a morte é “natural, inegável e inevitável”, nos comportamos como se fosse diferente. E “quando a morte abate alguém que amamos (…) nossas esperanças, nossos desejos e nossos prazeres jazem no túmulo com essa pessoa, nada nos consola, nada preenche o vazio deixado pelo ente querido”4.

Quando escreve o texto citado, a primeira guerra mundial havia sido deflagrada há apenas um ano. Havia um clima de desilusão na população, não diferente de hoje na pandemia de COVID-19. Apesar de não estarmos em guerra, não termos bombas, armas e bombardeios, a pulsão de morte se apresenta na inconsequência de atos observada em diferentes meios.

Foi à medida que o número de mortes se elevou que a pandemia nos atingiu como algo terrível. Fomos forçados a acreditar nela, a mudar a atitude comum frente à morte, nos aproximando do que falou Freud “as pessoas realmente morrem, e não mais uma a uma, porém muitas, frequentemente dezenas de milhares, num único dia. E a morte não é mais um acontecimento fortuito”5.

Dessa forma, interessante seria “dar à morte o lugar na realidade e em nossos pensamentos que lhe é devido. […] [Isso] tem a vantagem de levar mais em conta a verdade e de novamente tornar a vida mais tolerável para nós. [Pois] tolerar a vida continua a ser, afinal de contas, o primeiro dever de todos os seres vivos”7.

Que possamos nos inspirar em Freud nestes tristes dias!


Referências:
* Freud e sua filha Sophie Halberstadt
1. Câmara Filho, L. A. Gripe Espanhola: a mãe das pandemias. Disponível em: https://hospitaldocoracao.com.br/novo/midias-e-artigos/artigos-nomes-da-medicina/gripe-espanhola-a-mae-de-todas-pandemias/. Acesso em 25/07/2021.
2. Freud, S. Carta a Binswanger de 14 de março de 1920. Disponível em: http://www.ipla.com.br/conteudos/artigos/carta-a-binswanger-de-14-de-marco-de-1920/. Acesso em 25/07/2021.
3. Freud, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915). In: Obras Completas. Vol. XIV, p. 281-312.  Rio de Janeiro: Imago, 1996.
4. Ibid, p. 300.
5. Ibid.p. 301.
6. Ibid.
7. Ibid. p. 309.
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