Por Frederico Feu de Carvalho (EBP/AMP) A erotomania é uma exigência pulsional derivada do postulado…
Bordas para o indizível: da maldita ao bem-dito[1]
Relatoras: Cláudia Reis (EBP/AMP) e Cristina Pinelli (EBP/AMP)
Este texto foi apresentado no IV Encontro TyA Brasil cujo título foi: O que diz o indizível do toxicômano na era das adições generalizadas que aconteceu no dia 11 de março de 2021. Ele passou por adaptações para sua publicação neste Boletim. Recolhemos algum conteúdo da autobiografia de Rita Lee[2] que, ao longo do texto, nos ajudou nas articulações teóricas.
Contém elaborações advindas do trabalho de diversos Núcleos de Investigação TyA no Brasil, através dos seguintes participantes: Andréa Eulálio (EBP/AMP), Aléssia Fontenelle (EBP/AMP), Cláudia Reis (EBP/AMP), Cristina Pinelli (EBP/AMP), Daniela Dinardi (TyA-MG), Fernanda Turbat (TyA-SC), Giovanna Quaglia (EBP/AMP), Luís Couto (TyA-MG), Marcelo Quintão (TyA-MG), Maria Wilma S. de Faria.(EBP/AMP).
Entre o dito e o não-dito
A invenção da psicanálise, por Freud, se deu a partir de uma articulação entre o dito e o não-dito. É o que Freud aprendeu com o caso Elizabeth von R. quando constata que a paciente apresentava no corpo o afeto ligado à representação pulsional recalcada. O afeto desvinculado de um dizer poderia ser localizado no corpo, como uma excitação.
No primeiro ensino de Lacan, a passagem de um indizível para a articulação significante se dá a partir da intervenção de um Outro, de onde o sujeito retira os significantes que poderiam desalojá-lo de um real pleno.
Temos a cena traumática infantil associada a um imperativo de não dizer, nunca contaria nem para ela mesma[3]. Esta cena nos permite interrogar sobre o ponto de real indizível para o sujeito.
A partir do seu último ensino, temos o encontro da língua com o corpo deixando um resto não assimilável, algo de um gozo se fixa. Disso resulta o mal entendido, o que nos leva a pensar o trauma como fixação desse encontro, momento de suspensão da significação, corte inapreensível pela aparelhagem simbólica.
Segundo Ansermet[4], o traumatismo se produz quando a criança, confrontada com o gozo do Outro, depara-se com a evidência inevitável de sua própria sexualidade, com o real sexual, sempre faltoso que se revela traumático. Temos então, as construções sintomáticas dos sujeitos contra o furo do traumatismo que podem revelar suas relações com o sexo e com a morte que são, para todo sujeito, duas questões fundamentais sem resposta.
Assim, nos intrigou nesta pesquisa, investigar quais as soluções que um sujeito feminino inventa para lidar com o que escapa ao discurso? A voz, o amor, a letra, seriam possíveis conectores do sujeito não-todo com seu corpo? Em relação às drogas, cumpririam a função de conexão, mas ao mesmo tempo de desconexão?
Com seu corpo
Com é uma preposição cara a Lacan, à qual ele dá seu sentido precioso – a instrumentação, nos diz Miller[5]. O homem se serve do corpo para falar. O corpo é o seu instrumento para falar. “Não é o corpo que fala por iniciativa própria, é sempre o homem que fala com seu corpo” [6].
Lacan constroi o termo “falasser”, condensando “dizer” e “ser” de uma só vez, para que algo seja pelo fato mesmo de dizer[7]. Nesta perspectiva, o falasser é sempre um ato de criação. O que poderia o falasser criar quando o que emerge como desejo do Outro é um imperativo de não dizer? Mal-dito? Maldito!
Para Lacan, o corpo inclui elementos incorporais: a voz e o olhar. No campo do olhar temos a imagem que denota uma desarmonia e se sustenta por meio dos restos de gozo no corpo.
A vozinha micra[8] nos traz a possibilidade de investigar se a reconexão do sujeito com o corpo, descrito como tábua despelada e masculinizada[9], se deu a partir de algo que veio do Outro; nesse caso, não um significante, mas o objeto voz. De certa maneira, não sem vários impasses e tropeços, será com sua vozinha micra, como a descreve, que ela prosseguirá e construirá algumas saídas.
Diante do irrepresentável, cada sujeito elege sua forma singular de dar corpo ao seu dizer, ao impossível de suportar.
Debochar de mim mesma é uma estratégia que sempre dá resultado positivo[10]. Estaríamos aqui diante de um ato de criação do falasser ao nos depararmos com a ironia, a irreverência, o chiste?
O recurso às drogas
Desde Freud[11], temos que a intoxicação pelo uso das drogas surge como uma maneira eficaz de lidar com o mal-estar, vindo de circunstâncias da vida que causam sofrimento.
A sensação de não estar dentro de seu próprio corpo em alguns momentos, ou de precisar de um extra para se sentir viva e confortável dentro do corpo, nos leva a indagar se o recurso às drogas seria uma forma de tratar o intratável do gozo no corpo que reitera?
Encontramos sujeitos anestesiados diante dos efeitos das substâncias e também sobre os efeitos da linguagem. Anestesia-se a dor de existir, frente ao insuportável: Quero tomar o que há para não ver o que há[12]. Este estado anestesiante parece manter o sujeito desconectado da vida e a substância possibilita que ele assim permaneça, para nada saber da inexistência da relação sexual: Com LSD o impossível não existe[13].
Trata-se da iteração do gozo do Um. Um sozinho, S1, sem fazer série, representante da completude imaginária, o Um da satisfação autística que Lacan introduz na última parte de seu ensino. Em seu curso O Ser e o Um[14], Miller nos diz que não se trata da repetição – esta é sempre a repetição do diferente. Trata-se, de fato, do mesmo, nomeado por ele de iteração. O que itera é um gozo que não está relacionado à palavra, nem ao sentido, e, sim, ao corpo propriamente dito. O Um se instala no corpo e faz dele esse aparelho de gozo. Apresenta um caráter compulsivo, excessivo, próprio da busca de uma satisfação pulsional incontornável que muitas vezes pode arrastar o sujeito à própria destruição.
O uso desenfreado de álcool e de substâncias diversas engendra um gozo deslocalizado, até o ponto de uma quase dissolução do corpo, de uma perda de seus contornos. A errância também pode ser considerada uma iteração, reiteração do significante Um em sua pura materialidade, a ecoar no corpo: O defeito de Ritinha é não saber quando parar[15].
A hipótese de pensar a droga como forma de tratar o ilimitado do gozo, nos aproximou do gozo não-todo e, consequentemente, do feminino enquanto algo que transcende os limites das palavras. A singularidade presente na forma de tratar o feminino, também se aplica à toxicomania que, igualmente, resiste ao saber universalizante.
“Sagrado Feminino”
Me refiro ao sagrado feminino, de nós meninas que temos um buraco a mais no corpo para administrar, do nosso universo complexo demais para machos, religiosos e políticos meterem o bico…[16]
A partir das fórmulas da sexuação, presentes no Seminário XX de Lacan, temos a lógica do não-todo que nos apresenta a inexistência do significante d’A mulher, ou seja, um significante que daria conta do todo. Temos, do lado feminino, um conjunto marcado por um menos, um gozo infinito, no sentido de ser não-localizável. Segundo Elisa Alvarenga[17], do lado feminino temos um supereu tirânico que funciona como imperativo de gozo para todos. A parceria aqui se daria pela via de que a droga nos introduz a um modo de ruptura com o gozo fálico e, assim, o gozo da droga afetaria o corpo ao modo do gozo feminino, não localizado?
O não-todo feminino introduz um outro ponto que é a relação com a exceção. A condição de exceção, atribuída à posição fálica e representada pela posição masculina que diz de um gozo finito e localizável, também é tratada pela cantora com a forma de chiste, utilizando-se da ironia. Bendita sois vós entre os planetas, bendito é o fruto de vossa semente é refrão da música Nave Terra. Este refrão faz alusão à expressão “bendito é o fruto” da oração Ave Maria. A expressão “bendito fruto” é utilizada na língua portuguesa, com origem naquela oração, para designar o único homem no recinto, designa a exceção. Há uma passagem na biografia em que comenta esta condição de exceção às avessas nos Mutantes, onde era a única integrante mulher e, depois de um percurso, convidada a deixar a banda.
Sabemos que Lacan “desnaturaliza” ou “desubstancializa”[18] a diferença homem e mulher. Para todo o ser falante há um gozo mudo que ele descobre a partir da sexualidade feminina que faz “o regime do gozo como tal”. Para a leitura da psicanálise este gozo escapa aos ditos e só pode ser tocado no nível do que veste o impossível, ou seja, para Miller um “bem-dizer” [19]. O bem-dizer seria então uma forma de fazer com o significante um ponto de borda ao impossível de dizer. Como possibilitar a construção de um contorno diante desse ilimitado?
Fazendo referência a Laurent, Elisa[20] nos aponta que o imperativo de gozo pode encontrar seus limites pela via do amor.
O amor como saída?
A contingência de um encontro se apresenta. Enquanto contingência, pode vir pela escuta de um ouvido afiado: de quem era aquela guitarra bacana que pontuava a música?[21]
O feminino passa pelo enigma do amor e à posição feminina cabe a alteridade necessária para alcançar a singularidade. O amor é da ordem da poesia: Eu e meu gato; Mania de você; Doce vampiro.
Alguma coisa acontecia no meu coração, corpo e alma, fazendo com que me sentisse a mais santa das criaturas e la mas caliente de las mujeres. Da bandeira sexo, drogas e rock‘n’roll sobrou apenas sexo e rock‘n’roll. Entrei numa fase inédita da vida e disse bem alto para quem quisesse ouvir: Afasta de mim esse cálice! Não precisava nenhum extra, para me sentir viva e confortável dentro do corpo, eu me sentia plena[22].
O imperativo de gozo parece encontrar algum limite. O amor introduz uma hiância, um vazio, e situa no Outro o objeto que falta. Temos uma permissão de algum intervalo de cessão de gozo.
Buscando uma articulação entre o campo do feminino e do indizível, poderíamos pensar no amor como via que possibilita a esse sujeito não sucumbir às drogas e à devastação? Pode o amor funcionar como certo anteparo à destruição mortífera do gozo toxicômano? Na experiência do singular, poderia o amor fazer fronteira ou limite para o ilimitado do gozo feminino? Como na posição feminina o gozo está além do falo, ela lança mão, ou conta, com o amor como forma de localizar esse gozo?
O feminino se situa em um espaço muito singular. Um espaço sem bordas onde “se há centro, a borda é uma ausência; e se há borda já não há centro possível”[23]. Há algo aí que transborda, que ultrapassa os limites onde não há uma fronteira definida como que um empuxo a um ilimitado que escapa à linguagem.
O que escapa à linguagem e fica fora da lógica significante toma uma dimensão de real, inapreensível pelo simbólico e neste sentido, indizível. Para Lacan, “o feminino é puro gozo do corpo que fala e que não cessa de não se escrever” [24].
Oscar Ventura[25] diz que “a questão inédita do amor formulada por Lacan subverte a lógica do amor como repetição. Para Lacan, o amor é invenção, em primeira instância é uma elaboração de saber, mas de um saber muito singular, um saber que diz respeito ao objeto, o amor é um modo de dirigir-se ao objeto pequeno a partir do outro do significante”. Podemos dizer que o amor está constituído no nível em que o gozo se articula com o Outro do significante. Temos, com Lacan[26] que “o homem serve de conector para que a mulher se torne essa Outra para ela mesma, como o é para ele”. Pela via do amor, o homem ao fazer da mulher objeto causa de seu desejo, poderá permitir-lhe ser Outra para ela mesma.
A escrita
O amor, sendo da ordem do encontro, é sempre faltoso e sendo o Real aquilo que não cessa de não se inscrever, o sujeito pode tentar evitar este encontro faltoso agarrando-se a um objeto mais-de-gozar[27].
Como colocar em palavras o que é o impossível de suportar? Como dar corpo ao dizer? Segundo a orientação lacaniana, tem que haver certa renúncia ao gozo para se recuperar algo no campo do Outro.
A escrita, enquanto um traço deste sujeito se conectar com o mundo, sempre esteve presente. Poderíamos pensá-la enquanto um recurso que daria um contorno ao real do trauma, ao não-dito?
Se, por um lado, temos o traumático inicial que não podemos apreender em termos de representação ou significados, por outro, temos o furo iterado pelo encontro com um real sem retorno. Há aqui um vácuo de representação que funciona como resíduo, como dejeto de um traço indelével deixado pelo encontro da linguagem com o corpo. No último ensino de Lacan, o que está em relevo não é a representação simbólica, mas as distintas maneiras de se inscrever o campo do gozo. Ou seja, as montagens, nas invenções possíveis a cada um, para lidar com esse inassimilável.
Nessa direção, Miller[28] nos esclarece que o Surrealismo prometia a salvação pela via dos dejetos e ressalta que a investigação psicanalítica também se dirige aos dejetos da vida psíquica, aos pequenos e aparentemente insignificantes detalhes que desfazem a intenção de significação. Assim, o dejeto pode ser tomado como uma peça avulsa, uma peça sem uso, um sem sentido de uso que não tem outra função, senão a de disfuncionar[29]. Contudo, ele também se presta a outros usos, e entre as múltiplas possibilidades, dele se pode gozar, já que se goza com o que “não serve para nada”[30].Recorremos a estas indicações para pensar o que aprendemos com o ato de criação das letras musicais de Rita Lee. Sua escrita nos remete às amarrações possíveis frente à pulsão de morte. A via da estetização do objeto, a arte, permite a um sujeito romper com a identificação ao dejeto.
Rita nos entrega sua autobiografia. Às crianças, deliciosos livros infantis. Uma invenção na forma de nos lançar seu perfume?
M.H.Brousse, em debate organizado pela diretoria de Biblioteca da EBP, sobre seu livro “Mulheres e Discursos”, nos elucida que o livro é um objeto, um corpo material que possui as três dimensões: imaginário, simbólico e real. Acrescenta que o livro interpreta seu autor. E ainda… Que o livro interpreta seu leitor!