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edução da maioridade

penal. Que solução é

essa?

Oscar Reymundo

Constatamos tods os dias que os dispositivos que regulam

as relações entre os sujeitos já não funcionam como em

outros tempos. Os valores que sustentavam a estrutura

social e familiar têm perdido a consistência e operatividade

de outrora com o conseqüente debilitamento e ruptura

dos laços sociais que ligam o sujeito ao Outro. Estamos em

um momento da civilização global no qual o imperativo

que empurra ao gozo do consumo, com sua delirante

promessa de felicidade plena e duradoura, não faz senão

precipitar o próprio sujeito na condição de mais um objeto

de consumo. Resgato, para esta reflexão que hoje nos

convoca, uma expressãode Philippe Lacadée que caracteriza

a adolescência como “a mais delicada das transições”

1

de

uma vida, caracterização que muito me auxilia para situar a

vulnerabilidade própria da adolescência, com sua tendência

ao imediatismo e à passagemao ato, que faz comque, neste

momento particular do capitalismo, sejam os adolescentes

os seres falantes que ficam mais expostos, e tantas vezes

sem recursos, perante a fragilização da lei que funcionava

interditando e orientando o gozo de cada um. Um dos

efeitosmais evidentes desta exposição é a impossibilidade de

tantos jovens para “se amparar emum relato simbólico que

lhes daria certa imagem valorizada ou lhes daria o valor de

si próprios”. É nessa ausência de relatos onde o silêncio da

pulsão se faz ouvir de modo tantas vezes devastador.

Neste panorama atual de empuxo ao gozo desenfreado

não é de estranhar que a admissibilidade da proposta de

redução da maioridade penal fora aprovada pela Comissão

de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados e,

portanto, a Proposta de Emenda Constitucional 171 esteja

sendo tramitada para ser votada sob os protestos de uns e os

gritos de júbilo de outros que pedem e esperamque jovens,

entre 16 e 18 anos, passem a ser julgados e condenados

à cadeia como adultos. A justificativa para esta decisão se

apóia na necessidade de buscar uma ‘correspondência’ entre

as condições do delito e a gravidade das punições, uma vez

que os partidários da redução da maioridade penal avaliam

que as sanções socioeducativas previstas no Estatuto da

Criança e do Adolescente muitas vezes não guardam essa

‘correspondência’ entre delito e punição.

A pergunta se impõe: perante os efeitos da queda selvagem

doOutro, que solução é essa que se pretende veicular através

da emenda? Ou deveríamos pensar que antes do que uma

solução a emenda está mais do lado da velha Lei de Talião

1 LACADÉE, P.

O despertar e o exílio

, Contra Capa ed., Rio

de Janeiro, 2011, pág. 8

que exige a reciprocidade do crime e da pena? Olho por

olho, dente por dente: um modo de nomear o gozo da

vingança. Será que algum dos legisladores que votarão a

favor da emenda está apostando mesmo a que, nos tempos

da implosão da autoridade tradicional e do conseqüente

transbordamento de gozo, o laço social que predomina nos

cárceres do Brasil pode ser um ponto de ancoragem para

esse transbordamento? Que orientação há nessa emenda

para tratar a dor de existir dos adolescentes que, uma vez

identificados como objeto dejeto, não sabempor que, nem

como, e nemmesmo, para quemnasceram?

Oprojeto de redução damaioridade penal dá provas de que

os adolescentes infratores, violentos e enlouquecidos tem se

tornadoumaalteridadeincompreensívelparaaracionalidade

do burocrata da eficiência, da estatística e dos critérios

de utilidade com os que se pretende poder determinar a

racionalidade ou a irracionalidade do comportamento de

tantos adolescentes que avançam às cegas e sem perspectiva

nummundo que lhes permanece opaco.

Cada dia se torna mais pateticamente claro que o gozo, essa

parte indizível que desde cedo na vida agita os corpos e os

pensamentos, não se deixa tomar por essa lógica utilitarista

com a qual quer se legislar. Que legislador ou jurista não

sabe, hoje, que na sua repetição o gozo recusa o valor

dissuasivo da pena? Será que ainda existe algumgovernante,

legislador, jurista, algum pai, mãe, educador, algum padre,

pastor, algum especialista psi, algum psicanalista que ainda

não tenha se confrontado com o impossível de governar,

de socializar, de educar, de curar, de catequizar, de legislar

ou de analisar? Certamente todo mundo já se confrontou

com esses impossíveis, com os próprios e com os alheios,

e certamente que muitos os interpretam com essa ponta

de desprezo paternalista próprio de quem acredita falar a

verdade.

Estamos em um momento da civilização no qual vemos

projetar-se um mundo sem sujeito. A particularidade da

clínica psicanalítica se situa, precisamente, na produção

do sujeito. É isto que o analista produz quando produz o

inconsciente: o sujeito como resposta do real. Lacan faz

referência a essa operação destacando a dimensão ética que

ela comporta. Ele diz: “De nossa posição de sujeito somos

responsáveis”. E hoje, enquanto se debate a diminuição da

idade de imputabilidade, o discurso jurídico trabalha em

cima de uma noção de adolescência na vertente de quem

é responsável enquanto imputável e de quem não é. Na

lógica jurídica, a imputabilidade de um ato reprovável

supõe um individuo que sendo capaz de dirigir suas ações

têm, no momento do ato, as condições que lhe permitem

compreender conscientemente a criminalidade desse ato.

De outro lado, a categoria de inimputável significa que

o Outro social não outorga ao individuo crédito algum

sobre sua capacidade para dirigir suas ações e, então, o

supõe não responsável, desamarrando deste modo, a

ordem normativa social da ordem normativa subjetiva,

deixando, então, o indivíduo por fora do laço social. Como

determinar, então, um castigo para um sujeito a quem não

se lhe supõe responsabilidade? A dificuldade para definir

um castigo nos coloca um problema ético, uma vez que é

justamente o castigo o que pode produzir algum efeito em

uma posição subjetiva. A responsabilidade subjetiva implica

em um sujeito do inconsciente, quer dizer que havendo