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S

obre a redução da

maioridade penal:

considerações a partir

da leitura de “Por que a

guerra?” de Sigmund Freud

Rafael Caetano Cherobin

1

Poucos temas de caráter político persistem com tanta

vivacidade em meio à população como a discussão sobre

a redução da maioridade penal. Acreditamos, contudo,

que a razão de sua proeminência atual, ao contrário do

que se poderia pensar, não se deve tanto à sua importância

em relação ao problema da violência ou ao fato de ser um

assunto mais palpável ao leigo, mas, antes, em razão dela

tangenciar justamente os cânones sob os quais nossa ordem

social e jurídica foi construída, isto é, por tocar no substrato

que reflete a dominação de uns sobre outros na sociedade

brasileira, e que oDireito é parte intrínseca.

Porconseguinte,nãoentraremosaquinoméritodosdiversos

argumentos “pró” e “contra” a redução da maioridade

penal, nem tocaremos na difícil questão de avaliar sob

qual idade alguém pode ser considerado um inimputável.

Do mesmo modo, não iremos propor nenhuma posição

intermediária para o problema, como a de ampliar o tempo

de internação de menores nos casos mais graves e violentos.

Assim procedemos porque, se estamos corretos em nossa

avaliação, a redução da maioridade penal é uma resposta

demasiadamente simples para um problema complexo,

refletindo, antes, a esperança - ou o desespero - que acaba

por recair sobre o Direito Penal, notadamente em um

país oligárquico e ainda marcado por uma desigualdade

desumana. Aliás, não deixa de ser surpreendente observar

que o problema da violência seja pensado reiteradamente a

partir de comparações estatísticas e jurídicas com países do

centro do capitalismo global.

Posto tais ressalvas, aquilo que realmente nos parece

pertinentepassaaseracompreensãodequaisrazõesobscuras

realmente figuram em tal proposta de lei. E, na tentativa

de captar tal idiossincrasia jurídica, de ummodo um tanto

ousado, propomos uma breve ontologia do Direito, que

tentamos extrair da leitura das cartas trocadas entre Albert

Einstein e Sigmund Freud em 1932, por ocasião de uma

proposta da Liga dasNações e de seu Instituto Internacional

para a Cooperação Intelectual, que visava promover a

interlocução entre grandes pensadores sobre questões que

fossem cruciais à humanidade.

2

1 Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor de Direito

da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC).

Aluno do Curso de Formação em Psicanálise da Orientação

Lacaniana/ Seção de Santa Catarina.

2

FREUD, Sigmund.

Por que a guerra?

Tradução de Jayme

Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 235-259. V.

Em uma dessas cartas, então, Einstein propõe uma

pergunta direta e objetiva: “Existe alguma forma de livrar

a humanidade da ameaça de guerra?”, ao que Freud tenta

responder. E, a primeira constatação dele é a de que o

Direito, ainda que seja considerado pelamaioria das pessoas

como uma ferramenta esperançosa à paz, é, antes de tudo,

um derivado da violência, e não a sua antítese. Daí se retira

que, se por um lado, a materialização do Direito difere

de uma situação de anomia, isto é, da total ausência de

regras, de modo a valer o poder dos mais fortes de matar

ou escravizar os mais fracos, por outro lado, é também

verdade que o Direito apenas representa a passagem da

resolução dos conflitos pelo uso individual e difuso da

violência, por um uso coletivo e centralizado da mesma,

ou seja, autorizado em certas circunstâncias e concretizado

por pessoas competentes que representam a comunidade,

tudo conforme previsto em lei. Todavia, assim sendo, a

ordem jurídica, que regula e permite a união não-violenta

entre indivíduos, somente funciona porque legitima o uso

da violência pela comunidade contra aqueles que se voltam

contra ela.

O segundo ponto elencado por Freud é que uma

comunidade somente pode ser duradoura se houver um

grau mínimo de identificações e de vínculos emocionais

entre seus membros, assim como o reconhecimento

de interesses comuns. Não é difícil perceber, então,

que quanto mais as leis apenas representarem grupos

particulares dentro da comunidade, que, ademais, tendem

a se identificar conforme seus interesses, mais os grupos

prejudicados também se inclinarão a se identificar entre si,

e, possivelmente, tentarãomodificar as leis. Por conseguinte,

conclui-se que oDireito será a expressão dessa correlação de

forças reais entre os grupos, o que pode se tensionar a todo

instante, e quando o conflito entre eles não se resolve através

de acordos oupormeio demudanças na cultura, a violência

inevitavelmente se desencadeará. Neste caso, aqueles que

estão no poder ficarão propensos a suspender o Direito

quando necessário, até que um grupo saia vencedor ou até

que se reequilibrem as forças existentes.

O terceiro aspecto ressaltado relaciona-se com a noção de

pulsão de morte freudiana, o que explicaria as tendências

humanas à agressividade e à destruição. Quando este

componente pulsional se volta para fora, ele pode levar

à guerra e à violência. Já quando se volta para dentro,

dá origem à culpa superegóica e pode ser um antídoto

contra a guerra e a violência, na medida em que as rebaixa

esteticamente e as torna insuportáveis aos pacifistas.

Conclui-se da assertivas freudianas, portanto, que duas

coisas podemcontribuir para a estabilidade da comunidade

e do Direito: a força coercitiva e os vínculos emocionais e

identificatórios entre os membros. E, além disso, a pulsão

de morte, quando voltada para dentro, através do supereu,

pode arrefecer a violência, ainda que o excessonesta reversão

tambémnos faça padecer das psiconeuroses.

Agora, voltando à temáticada reduçãodamaioridadepenal,

gostaríamos de sublinhar três pontos que as colocações de

Freud nos fizerampensar.

Oprimeiro deles é a discrepância entre a leitura de realidade

freudiana, ainda que carente de uma análise sociológica,

e o discurso liberal dominante de nossos dias, que pinta

XXII. (Edição Standard Brasileira das obras psicológicas

completas de Sigmund Freud).