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o chamado Estado Democrático de Direito, sempre

combinado ao capitalismo, como uma fórmula universal –

nãoépormenos que já sepôde atédeclarar ofimdahistória.

Ou seja, todo discurso crítico, nesse sentido, passa a ser

imediatamente traduzido como populismo e anacronismo,

aindaque, nacontramãodessaótica totalizante, quedomina

os principais meios de comunicação, torna-se tambémcada

vez mais perceptível às pessoas que os meios convencionais

de se fazer política são insuficientes atualmente, de modo

que o Estado Democrático de Direito se tornou hoje tanto

uma ideologia dos poderosos como uma reivindicação dos

oprimidos.

O segundo ponto é que se o direito diz respeito a uma

violência autorizada da comunidade, e se essa comunidade

está cindida em grupos de poder, então o Direito é sempre

a expressão de parte dela, e não dela como um todo. Assim,

quando observamos os ânimos exaltados em relação ao

debate sobre a redução da maioridade penal, convêm-nos

perguntar se a proposta realmente visa ao universal, ou se,

não obstante a igualdade de todos perante a lei, no mundo

real, ela recairá com mais ênfase sobre alguma camada

específica da sociedade. Sustentamos que os recentes

dados sobre a população carcerária do Brasil respondem

à indagação, até porque nem sempre a violência estatal

precisa se dirigir contra grupos organizados e rivais, mas

pode ser também disseminada contra certas minorias ou

contra as camadas mais marginalizadas e desprotegidas,

que se tornam as inimigas a serem combatidas. Enfim, o

núcleo da questão aponta para o seguinte dilema ético: se os

altos índices de violência resultam de desvios individuais de

jovens criminosos, que coincidentemente sãona suamaioria

pobres e negros, então a proposta de lei realmente tem um

caráter universal e supraclassista; em contrapartida, se os

altos índices de violênciapossuemumadimensão social, que

por uma série de razões afeta a vida individual, então parece

que o legislador, incapaz de tocar no cerne do problema,

visa seletivamente à possibilidade legal de se encarcerar um

grupo socialmente excluído, a saber, a mesma juventude

pobre e negra. Em suma, ou a responsabilidade é toda

individual, ou é também social. E, embora uma não exclua

a outra necessariamente, em nossa análise constatamos que

tem prevalecido politicamente a primeira posição, que no

entanto consideramos superficial, pois através dela ficamos

imobilizados e apenas podemos pedir por mais repressão.

Todavia, repressão no país já existe, através das torturas,

das execuções sumárias, do tratamento execrável nas

penitenciárias, dentre outras práticas paralegais, que apesar

da severidade são incapazes de pôr fim à criminalidade.

O terceiro e último ponto foi derivado de uma passagem

emqueFreud salienta quemuitas das atrocidades cometidas

na história da humanidade foram consubstanciadas em

motivações idealistas, enquanto que a pulsão de morte teria

facilitado e atribuído certa satisfação a tais atrocidades. Ora,

não é difícil entender a partir daí por que devemos temer

as pessoas que se dizem de bem, pois num movimento só

elas são capazes de obter uma dupla satisfação, a da pulsão

destrutiva dirigida para fora e a da obediência superegóica

dirigida para dentro, combinando-semoralismo e violência,

justiça e vingança. E, sabemos, outrossim, o quanto é difícil

alguém desistir de seus modos de gozo, especialmente

quando ele é validado socialmente.

Por fim, resta acrescentar que quando aqui buscamos pensar

criticamente o assunto, não se está tentando desonerar a

responsabilidade individual ou romantizar e legitimar a

tragédia da criminalidade no Brasil, nem fechar as portas

para o debate ou para eventuais modificações na legislação,

entretanto, ao abordá-lo dentro de um contexto global

da sociedade, não se pode deixar de ter a impressão de

que a irracionalidade que tomou conta da questão reflete

uma mistura de violência de classe e de ódio biopolítico

àqueles que supostamente atrasam o progresso brasileiro,

mas que, na verdade, não passam de partes intrínsecas do

que aqui há de progresso, sobretudo se considerarmos que

desenvolvimento e subdesenvolvimento se mesclam em

nosso país. Desse modo, como um sintoma, que tanto

mais volta no Real quanto menos pode ser simbolizado ou

emergir à consciência, no caso, à consciência política, trata-

se daquilo que não se pode dizer nem ver, do peso-morto

que sobrecarrega - como diria Darci Ribeiro - esta máquina

de moer gente que é o Brasil.

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RIBEIRO, Darci.

O povo brasileiro

: a formação e o

sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,

1995, p. 106 e ss.