![Show Menu](styles/mobile-menu.png)
![Page Background](./../common/page-substrates/page0012.jpg)
o chamado Estado Democrático de Direito, sempre
combinado ao capitalismo, como uma fórmula universal –
nãoépormenos que já sepôde atédeclarar ofimdahistória.
Ou seja, todo discurso crítico, nesse sentido, passa a ser
imediatamente traduzido como populismo e anacronismo,
aindaque, nacontramãodessaótica totalizante, quedomina
os principais meios de comunicação, torna-se tambémcada
vez mais perceptível às pessoas que os meios convencionais
de se fazer política são insuficientes atualmente, de modo
que o Estado Democrático de Direito se tornou hoje tanto
uma ideologia dos poderosos como uma reivindicação dos
oprimidos.
O segundo ponto é que se o direito diz respeito a uma
violência autorizada da comunidade, e se essa comunidade
está cindida em grupos de poder, então o Direito é sempre
a expressão de parte dela, e não dela como um todo. Assim,
quando observamos os ânimos exaltados em relação ao
debate sobre a redução da maioridade penal, convêm-nos
perguntar se a proposta realmente visa ao universal, ou se,
não obstante a igualdade de todos perante a lei, no mundo
real, ela recairá com mais ênfase sobre alguma camada
específica da sociedade. Sustentamos que os recentes
dados sobre a população carcerária do Brasil respondem
à indagação, até porque nem sempre a violência estatal
precisa se dirigir contra grupos organizados e rivais, mas
pode ser também disseminada contra certas minorias ou
contra as camadas mais marginalizadas e desprotegidas,
que se tornam as inimigas a serem combatidas. Enfim, o
núcleo da questão aponta para o seguinte dilema ético: se os
altos índices de violência resultam de desvios individuais de
jovens criminosos, que coincidentemente sãona suamaioria
pobres e negros, então a proposta de lei realmente tem um
caráter universal e supraclassista; em contrapartida, se os
altos índices de violênciapossuemumadimensão social, que
por uma série de razões afeta a vida individual, então parece
que o legislador, incapaz de tocar no cerne do problema,
visa seletivamente à possibilidade legal de se encarcerar um
grupo socialmente excluído, a saber, a mesma juventude
pobre e negra. Em suma, ou a responsabilidade é toda
individual, ou é também social. E, embora uma não exclua
a outra necessariamente, em nossa análise constatamos que
tem prevalecido politicamente a primeira posição, que no
entanto consideramos superficial, pois através dela ficamos
imobilizados e apenas podemos pedir por mais repressão.
Todavia, repressão no país já existe, através das torturas,
das execuções sumárias, do tratamento execrável nas
penitenciárias, dentre outras práticas paralegais, que apesar
da severidade são incapazes de pôr fim à criminalidade.
O terceiro e último ponto foi derivado de uma passagem
emqueFreud salienta quemuitas das atrocidades cometidas
na história da humanidade foram consubstanciadas em
motivações idealistas, enquanto que a pulsão de morte teria
facilitado e atribuído certa satisfação a tais atrocidades. Ora,
não é difícil entender a partir daí por que devemos temer
as pessoas que se dizem de bem, pois num movimento só
elas são capazes de obter uma dupla satisfação, a da pulsão
destrutiva dirigida para fora e a da obediência superegóica
dirigida para dentro, combinando-semoralismo e violência,
justiça e vingança. E, sabemos, outrossim, o quanto é difícil
alguém desistir de seus modos de gozo, especialmente
quando ele é validado socialmente.
Por fim, resta acrescentar que quando aqui buscamos pensar
criticamente o assunto, não se está tentando desonerar a
responsabilidade individual ou romantizar e legitimar a
tragédia da criminalidade no Brasil, nem fechar as portas
para o debate ou para eventuais modificações na legislação,
entretanto, ao abordá-lo dentro de um contexto global
da sociedade, não se pode deixar de ter a impressão de
que a irracionalidade que tomou conta da questão reflete
uma mistura de violência de classe e de ódio biopolítico
àqueles que supostamente atrasam o progresso brasileiro,
mas que, na verdade, não passam de partes intrínsecas do
que aqui há de progresso, sobretudo se considerarmos que
desenvolvimento e subdesenvolvimento se mesclam em
nosso país. Desse modo, como um sintoma, que tanto
mais volta no Real quanto menos pode ser simbolizado ou
emergir à consciência, no caso, à consciência política, trata-
se daquilo que não se pode dizer nem ver, do peso-morto
que sobrecarrega - como diria Darci Ribeiro - esta máquina
de moer gente que é o Brasil.
3
3
RIBEIRO, Darci.
O povo brasileiro
: a formação e o
sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1995, p. 106 e ss.