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certamente tem a ver com as limitações

existentes entre todo o eu individual e

os outros, consiste, verdadeiramente, a

Ars poética (FREUD, S. 2015, p. 63-

64).

Qual seria, na visão de Freud, o segredo mais íntimo da

arte poética, senão a capacidade de suspender a fina e tênue

película que separa o eu individual e o outro, encontrando

no mais profundo mergulho em nossa intimidade não

uma essência interior, mas justamente seu contrário, uma

exterioridade? A capacidade de desocultar uma fantasia, de

levantar um véu, sem cair na banalização exibicionista da

confissão pública da intimidade, um pouco na linha em que

se separam o erótico e o pornográfico? Houve um tempo em

que a interpretação psicanalítica sonhou que bastava tornar

consciente um conteúdo da fantasia inconsciente para que

o recalque fosse como que superado e o sintoma pudesse

ceder em sua morbidade. No entanto, já aqui, em 1908,

Freud parece vislumbrar o que depois se consolidará com o

conceito de perlaboração, uma forma de trabalho do material

fantasístico que se dá através de uma elaboração paulatina

de conteúdos inconscientes por um certo regime de uso

da palavra. Esse regime supõe uma escuta, um dispositivo

em que a palavra circula fora dos espaços habituais do

reconhecimento, do aplauso ou da censura? Não estamos

aqui na antecâmara de uma experiência da extimidade, na

medida em que encontramos no âmago de nosso ser, em seu

núcleo mais íntimo, algo relativo à alteridade mais radical?

Pois é através de alterações e ocultamentos que o poeta atenua

o caráter egoísta das fantasias, possibilitando assim o “ganho

de prazer puramente formal” (p. 64). Não apenas a ciência é

condição da psicanálise, mas também a literatura.

Gilson Iannini

(Ouro Preto-Belo Horizonte)

Obras citadas:

FREUD, S.

Correspondance 1873-1939

. (1960) Paris:

Gallimard, 1991.

FREUD, S.

Arte, Literatura e os artistas

. Belo

Horizonte: Autêntica, 2015.

LYOTARD, J.-F. (1994). Freud selon Cèzanne.

Em Des

dispositifs pulsionnels

. Paris: Galilée.

LAURENT, E. (1992) “Quatro observações sobre a

preocupação científica”. In: GIROUD et alii,

Lacan,

você conhece?

São Paulo: Cultura, 1998.

STAROBINSKI, J.

Hamlet et Freud

. In: JONES, E.

Hamlet et Oedipe. Paris: Gallimard, 1967.